Uma “tempestade perfeita” à vista do Governo de Jair Bolsonaro

A reforma do sistema de pensões é o grande teste ao Presidente brasileiro, que ainda não começou propriamente a governar. Um falhanço nas negociações em Brasília pode ser uma "tempestade perfeita" para o Governo.

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Ueslei Marcelino/Reuters

Nos pouco mais de três meses que passaram desde que tomou posse, o Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, já foi protagonista dos mais diversos episódios, desde as relações entre um dos seus filhos e as milícias criminosas do Rio de Janeiro, passando pela demissão de um ministro, e culminando com a publicação pelo próprio de um vídeo de teor sexual na sua conta de Twitter. Porém, a generalidade dos analistas considera que o ex-capitão do Exército ainda não começou verdadeiramente a governar. Nos próximos meses, o grande teste do Governo será a discussão e a aprovação da reforma do sistema de pensões (a previdência), da qual, em última análise, poderá depender a própria permanência de Bolsonaro no Palácio do Planalto.

O tema está longe de entusiasmar e não é terreno favorável a simplificações condensadas em tweets polémicos ou memes difundidos em massa. Num debate tão técnico como o da reforma das pensões, Bolsonaro está fora do seu elemento – enquanto candidato chegou a admitir nada perceber sobre economia e encaminhava qualquer questão para o que seria seu ministro, Paulo Guedes. Mas ninguém consegue desvalorizar a importância desta reforma para a vida dos brasileiros e para o futuro do Governo.

Alterar o sistema de pensões brasileiro é “incontornável”, diz ao PÚBLICO, por telefone, o professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), Jairo Nicolau. Apesar de ter sido um tema praticamente ausente da campanha eleitoral, tanto a esquerda como a direita concordavam na necessidade de uma reforma estrutural neste campo. “Este é um país que tem mudado muito a sua demografia, mas tem um sistema de pensões desactualizado, e tem de corrigir muitas assimetrias”, explica Nicolau.

A proposta do Governo já foi encaminhada para o Congresso, e inclui medidas como a subida da idade mínima da reforma para os 60 anos (mulheres) e 65 (homens) e 20 anos de contribuições, mudanças na atribuição de um subsídio aos idosos mais pobres e alterações às contribuições da população activa. O espírito geral da reforma da previdência é corrigir o elevado défice do sistema de Segurança Social, que é considerado desadequado à estrutura demográfica do país. “Quanto mais se demora a encarar a reforma da previdência, mais esse défice tende a acentuar-se”, explica ao PÚBLICO o professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Marco Antônio Teixeira, através do Skype.

Mexer nos privilégios

Dizer-se que a tarefa é difícil é um eufemismo. Com a constituição da primeira comissão parlamentar sobre o sistema de pensões, na semana passada, foi dado o primeiro passo de um longo processo de desfecho imprevisível, mas que todos os observadores estão de acordo quanto ao carácter decisivo para Bolsonaro.

“A sobrevivência do Governo, não apenas do ponto de vista orçamental, mas também do ponto de vista político, depende da aprovação da reforma da previdência”, afirma Teixeira.

A proposta do Governo prevê emendas à Constituição, pelo que serão necessárias amplas maiorias nas duas câmaras do Congresso – pelo menos 308 votos na Câmara dos Deputados e 49 no Senado. “Neste momento”, diz Jairo Nicolau, “a base de apoio [à reforma do Governo] é muito ténue”, e, por isso, há um grande trabalho de coordenação política a fazer para congregar apoios em Brasília. O momento requer “experiência e liderança”, nota Marco Teixeira.

Uma reforma como esta toca no coração dos privilégios de várias classes, todas elas numa disputa acesa para vender caro qualquer compromisso. Um dos principais exemplos é o dos militares, cujo regime de pensões figura numa proposta à parte, que será conhecida apenas esta quarta-feira, algo que é visto como um reflexo da forte influência que este sector detém sobre o Governo – oito ministérios são chefiados por militares na reserva, para além do vice-Presidente, o antigo general Hamilton Mourão.

Deputados e corporações

O jogo negocial complica-se num Congresso com a configuração do brasileiro, onde os vínculos dos deputados são mais fortes junto das suas comunidades e de corporações temáticas que representam, do que em relação aos seus partidos.

“É um desafio”, nota Jairo Nicolau, “porque essas corporações que terão benefícios perdidos vão mobilizar-se ao longo deste semestre para defender os seus interesses”. Há analistas que antecipam a convocação de greves pelos sindicatos, sobretudo os que representam os funcionários públicos.

Apesar de ter sido deputado durante quase 30 anos, Bolsonaro foi eleito com a promessa de trazer uma nova forma de fazer política, recusando entrar no jogo tradicional das trocas de financiamento e cargos por votos – designado jocosamente por “toma lá, dá cá”. Uma das principais interrogações é saber como irá o Governo conseguir um apoio tão amplo para a sua proposta, mantendo esta promessa. “A probabilidade de ele aprovar uma reforma forte sem oferecer algo da velha política aos deputados e senadores é muito pequena”, observa Nicolau.

O cientista político da IUPERJ sublinha que a troca de votos no Congresso por financiamento público a projectos não é ilegal e, na verdade, tornou-se no “ADN da política brasileira”. “Boa parte dos deputados no Congresso, que chamamos de baixo clero, são praticamente prefeitos [presidentes de câmara] federais, que estão em Brasília a tentar extrair recursos para as suas bases”, explica Jairo Nicolau. “Não vejo como quebrar isso a não ser com uma reforma total do sistema político.”

Ainda o processo está no início e a coordenação – ou melhor, a sua ausência – do Governo junto do Congresso já tem sido objecto de críticas. Na semana em que a Comissão de Constituição e Justiça, uma das responsáveis por debater a reforma, foi formada, o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, considerado um dos principais operacionais de articulação política do Governo, partiu para a Antárctida numa visita oficial. No meio das críticas, Lorenzoni gravou um vídeo a partir do Pólo Sul, em que garantiu que “o Governo não perderá o seu rumo”.

Um dos principais obstáculos a uma tramitação tranquila são as pequenas crises mediáticas que têm envolvido o Governo, avisam os analistas. O objectivo de Bolsonaro e Guedes é ter a reforma aprovada ainda no primeiro semestre, mas poucos observadores acreditam no cumprimento desse prazo. “O Governo é inábil quando produz ele próprio crises que tomam tempo e energia”, diz Nicolau. “Isso desgasta os apoiantes do Governo no Congresso, o deputado tem que ir ao plenário defender o Presidente, gera uma comoção, tudo isso vai minando as relações entre os parlamentares”, acrescenta.

Falhanço e impeachment

O que se inicia agora é uma luta contra o tempo. Quanto mais tardar o processo de aprovação, mais concessões será obrigado o Governo a fazer. Os especialistas consideram altamente improvável que nenhuma reforma venha a ser aprovada – um cenário extremo que tornaria praticamente nulas as condições de governabilidade –, mas se o texto final for muito diferente da proposta desenhada por Guedes, então o Governo não irá escapar de uma derrota.

Marco Antônio Teixeira, da FGV, estima que o Governo esteja disponível para negociar mudanças à idade mínima da reforma e ao benefício de prestação continuada, um subsídio atribuído aos reformados mais pobres. “De resto, o Governo não abre mão. Se o fizer, a impressão que vai ficar é que foi aprovado um paliativo, um pequeno remendo”, afirma.

Uma derrota do Governo pode ter efeitos catastróficos. Teixeira estabelece um paralelismo com as condições que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff para dizer que os ingredientes para uma “tempestade perfeita” não estão longe.

“Os sinais de deterioração da economia já são evidentes”, observa o politólogo, dando como exemplo o encerramento da fábrica da Ford em São Bernardo do Campo, na grande São Paulo. “Se a isso se soma um fracasso na reforma da previdência, e um conjunto de problemas políticos que o Presidente e a família têm arranjado, motivos jurídicos para abrir um processo de impeachment vão começar a aparecer.”

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