As dores (e a força) que ficam depois do cancro da mama

Desde 2012 que uma equipa de especialistas acompanha 500 mulheres que tiveram cancro da mama para saber mais sobre a qualidade de vida depois da doença e do tratamento. Encontraram, entre outras coisas, dor neuropática, mudança de hábitos e problemas de concentração e memória.

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Da esquerda para a direita, a investigadora Ana Rute Costa, Benedita Campos, Susana Pereira (investigadora), Adelina Vidal e Eva Barbosa Adriano Miranda

Adelina Vidal, 74 anos, Eva Barbosa, 56 anos, e Benedita Campos, 63 anos. Três mulheres que receberam o diagnóstico de cancro da mama em 2012 e que participam no projecto de investigação do Instituto Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP). O estudo Neon-BC (acrónimo que resulta de “neuro-oncology” e de “breast cancer") acompanha 506 mulheres desde 2012 para avaliar as complicações que surgem com a doença e o tratamento.

A dor neuropática é o problema neurológico mais frequente, mas também há queixas de noites mal dormidas, falta de concentração e falhas de memória. À margem do estudo, percebe-se que, além da dor, também sobra a força.

Depois de tudo, pode ficar uma dor neuropática a moer o corpo, noites mal dormidas, falhas de memória, falta de concentração e cansaço. “O estudo sobre as complicações neurológicas de doentes tratadas a cancro da mama começou em 2012 e o objectivo foi perceber quais as complicações que os tratamentos podem trazer a longo prazo”, explica ao PÚBLICO Susana Pereira, investigadora do ISPUP e Neurologista do IPO no Porto.

Esta é uma neoplasia muito frequente e “o paradigma mudou”, constata a investigadora. “Deixámos de estar apenas preocupados em fazer com que as doentes vivessem mais tempo mas começamos a ter muitas situações em que a doença passa a ser crónica, na maior parte das doentes é esperado que voltem ao trabalho e assumam uma vida normal após os tratamentos.” Mas é importante identificar e controlar as sequelas que ficam no regresso a uma normalidade que nunca será igual ao que foi antes.

Há marcas óbvias, como as cicatrizes que ficam no corpo e que podem doer de muitas maneiras. Frequentemente, as queixas das mulheres com cancro da mama vão ter ao serviço de neurologia. “Sempre tivemos muitos pedidos de consulta de neurologia por doentes com cancro da mama por queixas de dor no local da cirurgia, complicações dos tratamentos de quimioterapia e queixas de memória pela dificuldade de voltar a assumir uma vida laboral com a mesma qualidade”, diz Susana Pereira.

As participantes no estudo foram recrutadas no ano do diagnóstico e fizeram um exame neurológico antes de iniciar os tratamentos. Depois continuaram a ser seguidas, com avaliações um ano depois e também aos três anos. Este ano decorreu a terceira avaliação, quando completavam já cinco anos de acompanhamento, que envolveu 466 mulheres.

Choques e bichos no corpo

O que é que já se sabe? “Sabemos que a dor neuropática é a complicação neurológica mais frequente dos tratamentos do cancro da mama” refere Susana Pereira, explicando que esta é uma dor que normalmente surge no local da cirurgia, ou no braço e axila do mesmo lado. Também há casos de dor neuropática nas mãos e nos pés como complicação da quimioterapia, a que se chama polineuropatia periférica. “É uma dor que é descrita pelas doentes como um choque eléctrico, como a sensação de estar a ser picada, ter bichos a rastejar debaixo da pele, uma dor que é muito incómoda”, descreve.

Uma das principais características da dor neuropática é o facto de não melhorar com os analgésicos vulgares que são usados para outros tipos de dor. Fármacos como o vulgar paracetamol não têm qualquer efeito e, por isso, é necessário recorrer a fármacos específicos com dosagens definidas caso a caso. Quando esta dor existe é também essencial tranquilizar a doente que reage com medo a este sintoma, temendo que possa ser uma terrível recidiva. Até porque, apesar de esta neoplasia ser conhecida pela sua manifestação silenciosa, as recidivas deste cancro podem ser acompanhadas de dor.

No terceiro ano de seguimento – quando a grande maioria das mulheres já estava a trabalhar - a dor neuropática afectava 25% das doentes e a polineuropatia periférica foi identificada em 12% das mulheres. “Também encontrámos nesta altura compromisso cognitivo em 8% das doentes.” Falta agora saber – com os novos dados que ainda estão a ser tratados – se estas complicações ainda continuam a ser frequentes passados cinco anos. “A percepção que temos é que a percentagem vai diminuindo mas estas complicações continuam nalguns casos. Queremos esclarecer qual é a percentagem das doentes que mantêm estes problemas e tentar identificar os factores de risco.”

Os investigadores perceberam também que a dor neuropática tem um impacto significativo na qualidade do sono. Muitas mulheres que passam por um processo de diagnóstico e tratamento do cancro da mama apresentam também elevados níveis de ansiedade. As cicatrizes, como já se disse, podem doer de muitas maneiras. E como distinguir uma dor neuropática de um mal-estar psicossomático relacionado com a ansiedade ou depressão? “Temos de ver onde é a dor e perceber se a zona onde existe dor corresponde ao território de um nervo periférico. As coisas têm de ter lógica à luz da neurologia”, responde a neurologista.

Menos tabaco e menos actividade física

O estudo também avaliou o que mudou nos comportamento destas doentes, antes e depois do tratamento do cancro. A investigadora Ana Rute Costa, do ISPUP, adianta que uma percentagem significativa de mulheres alterou “positivamente” os seus comportamentos em saúde, após o diagnóstico. “Cerca de 30% deixaram de fumar e 25% diminuíram o consumo de álcool para uma unidade por dia ou menos.” Além disso, quase 10% das mulheres aumentaram a prática de actividade física e o consumo de frutas e vegetais.

Mas existe outro grupo de mulheres. “Entre as doentes que seguiam as recomendações antes do diagnóstico, mais de metade parou a sua actividade física, quase um terço ficou com excesso de peso ou obesidade e 6% reduziu o consumo de frutas e vegetais para menos de cinco porções por dia”, refere ainda o resumo do projecto.

A investigadora avisa que o financiamento do projecto – que arrancou com um apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e já serviu de fonte de dados para duas teses de doutoramento, três dissertações de mestrado já concluídas e ainda para 13 publicações em revistas científicas internacionais – acabou. Era bom que pudessem continuar.

O cansaço e fadiga são os sintomas mais frequentes e visíveis nas doentes obrigadas a entrar nesta luta contra o cancro. Mas mais do que o cansaço, há uma força estranha que sobressai nestas mulheres. Mulheres como Adelina Vidal, Eva Barbosa e Benedita Campos. O PÚBLICO falou com as três ao mesmo tempo e em cada história encontra-se a tremenda sensação de que ao encarar o abismo de um cancro há qualquer coisa enorme que acorda nestas mulheres. Sobreviver a um cancro parece ser mais do que simplesmente viver.

Adelina e um “pontinho negro”

Adelina Vidal, aposentada do Ministério das Finanças, é a primeira a falar. Recua a 2012 quando fez o rastreio de rotina. “Recebi uma carta a pedir que me deslocasse novamente para ser observada. Vi logo que havia problema. Disse um palavrão.” Não tinha sintomas, lembra. Apenas um “pontinho negro” que se transformou num processo que passou para o IPO. “Até ao fim acreditei que estava tudo enganado. No dia da cirurgia, quando acordei, uma enfermeira muito jovem, muito lindinha, disse-me ‘ai, dona Adelina, saiu-lhe o euromilhões!’. E eu pensei que tinha razão, eles enganaram-se e eu não tinha nada. Mas não. Afinal, era por não ter sido preciso fazer o esvaziamento da axila.”

Adelina Vidal anda com a ajuda de um par de canadianas. “Uso canadianas desde os 20 anos, tive poliomielite aos 22 meses”, explica sem hesitar, num segundo. O que não significa que seja fácil. A ajuda de marcha limita-a quanto baste. “Não faço aquilo que quero. Mas faço outras coisas. Faço tudo. Os médicos dizem que a minha marcha é deambulação. Acho estranho. Olha deambular, acho estúpido! Eu ando!”

Talvez por necessidade de justificar o discurso seguro, Adelina esclarece que nunca foi nem é “dondoca”. “Levanto-me, tomo duche, faço tudo. Eu cuido de mim, não tenho ninguém.” Antes e depois do cancro. Nunca casou, nem teve filhos. “Na minha geração os homens não queriam mulheres deficientes. Agora aceitam. Só se eu fosse muito rica. Mas não era. Tinha outras riquezas, tinha uma riqueza de vida, de educação, de experiência, fui muito lutadora, trabalhei 37 anos.” Também não tem irmãos. “Não tenho ninguém. Sou a zero, a zerinho da família.”

Por estas e outras, acredita que Deus estava de férias quando ela foi feita. Mas avisa: “Apesar de não ter boas pernas e pernas boas, gosto muito de mim.” Sobre a participação no projecto, lembra-se que estava na clínica de mama quando foi desafiada por Susana Pereira. Não teve dor neuropática, mas lembra-se de um mal-estar com a radioterapia. Não fez mastectomia. “Só” tirou o tumor.

Eva aguentou sozinha

Eva Barbosa conta que tirou mais. Ficou sem metade da mama. É economista, “no activo” e o trabalho foi das maiores ajudas. “Quando trabalhava não pensava no resto”. A baixa para fazer os tratamentos (quimioterapia e radioterapia) durou um ano e quatro meses. Depois regressou, como esperado, a uma vida parecida com o antes do cancro.

Actualmente faz o sétimo ano de hormonoterapia, faltam mais três. A investigadora Susana Pereira esclarece que, além da quimioterapia, a hormonoterapia poderá também ter algum peso nas alterações cognitivas. Eva Barbosa confirma. “Falta de concentração, esquecimento…”, diz, lembrando que este prejuízo apareceu ainda durante no tratamento de quimioterapia. “Costumo dizer que a quimioterapia me queimou o cérebro, não me lembrava de nada, não me conseguia concentrar. Estava em casa sem fazer nada e queria ler um bocadinho, uma revista ou um livro, mas quando lia não entendia nada, tinha de ler duas e três vezes. Faltavam-me palavras simples em conversas simples.”

Eva sofreu com dor neuropática. “Durante anos, sentia que tinha isto tudo queimado. Tinha fisgadas, uma dor de choque eléctrico. Fui encaminhada para neurologia.”

Andando para trás no tempo, lembra ainda que o diagnóstico também chegou em Janeiro de 2012, depois de uma mamografia de rotina na Liga Portuguesa contra o Cancro. “Também recebi a cartinha. Não disse nada a ninguém. Fui sozinha. Repetiram e fui encaminhada para o IPO”. Foi operada em Abril e depois vieram os tratamentos. Chorou sozinha muitas vezes. Todas as noites quando ia vestir o pijama. Antes, durante e depois. “Eu estava sem cabelo, eu tinha uma mama defeituosa, uma grande e uma pequena, uma para cima outra para baixo. O meu marido estava a ver televisão, os meus filhos a estudar e eu chorava, fechada na casa de banho. Ninguém me via. Ninguém. Dez minutos e depois lavava a cara e a caixa dos pirolitos já ficava melhor.”

O que custou mais? “Foi tudo. A dor, os tratamentos, dores de cabeça terríveis, nas costelas, a sensação que estava incapaz, que não conseguia pensar.” E agora? “Posso dizer que estou bem”, e sorri. A memória não voltou ao que era: “Não está 100% mas agora estará, vamos dizer, nos 90%.” Diz que engordou um pouco e continua a tentar contrariar a preguiça com convites que lança ao marido para fazer caminhadas. Eva fica assim, de sorriso preso, olhos brilhantes, parada a olhar para quem não pode imaginar o que lhe custou esta doença. “Eu sou forte. Eu consigo controlar esta doença e venci-a.”

Benedita e os remendos

Um dia, Benedita Campos olhou para o espelho e viu uma mama esquisita. “Perguntei ao meu marido: ‘Isto não está estranho?’ Ele respondeu: ‘Está, tens aí uma coisa fora do sítio’.” Numa voz com um tom grave e sério, conta que foi fazer uma mamografia à Liga Portuguesa contra o Cancro e no próprio dia disseram-lhe que iria passar para o IPO. “E pronto. Tirei a mama. Fiz a reconstrução mas ficou mal. Eu dizia que tinha um alperce de um lado e um melão do outro.”

Um pedaço de humor para disfarçar a dor, mas a frase já deve ter sido contada tantas vezes que perdeu a graça. Benedita já tinha passado pelo diagnóstico de cancro, cirurgia, tratamentos e, no início de tudo, por um contratempo com a perda do seu processo clínico que atrasou respostas e soluções e prolongou angústias. Mas a reconstrução da mama é que foi o gatilho, lembra. “Foi nessa altura que desatinei, não conseguia comprar um soutien. O meu marido dizia-me para comprar dois, de tamanhos diferentes, e depois adaptar. Mas eu disse: ‘Tu julgas que eu sou um farrapeiro para andar aqui aos remendos?’.” Foi necessário fazer uma nova reconstrução (já tinham passado quatro anos da cirurgia) para acertar as medidas, reequilibrar a coluna e a auto-estima.

Sobre as dores que ficam, relativiza. Na altura da quimioterapia, ficava dois dias em casa para recuperar e depois voltava ao café que decidiu gerir, depois de anos como anotadora da RTP. Quanto ao cansaço, diz que sempre o meteu no bolso. “Sentia-me cansada. Mas qual é o problema? Anda-se para a frente.” Entretanto, admite, perdeu um pouco a paciência para aturar pessoas, e fechou o negócio. “Agora, estou por casa mas não estou fechada em casa.” Passou a fazer ioga e aconselha. “Sou um bocado ‘speedada’. E já sou muito menos desde que comecei ioga, ajudou-me a sentir um certo controlo das emoções.”

As dores que tem hoje são as que teve sempre. “Sempre tive dores de cabeça, desde miúda. O meu pai dizia-me que achava estranho como é que me podia doer uma coisa que eu não tinha”, graceja de novo. Apesar das suas velhas dores, o convite para participar num estudo sobre a dor neuropática foi aceite de imediato. “Se é para ajudar os outros, que se sirvam de mim.”  

Benedita Campos, Eva Barbosa e Adelina Vidal nunca se tinham conhecido antes, mas a cumplicidade é quase imediata. Talvez porque sabem algo sobre as dores que ficam depois do cancro que os outros, por mais estudos que façam, não podem compreender.

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