Combater o bom combate

Deixar o combate à desinformação nas mãos do Governo, qualquer que seja, é “entregar o ouro ao bandido”, abrir as portas para instrumentalizar esse combate e condicionar o debate público.

Na passada semana, foi agendado na Assembleia da República um tema tão importante como “O Combate à Desinformação – Em Defesa da Democracia”. Uma discussão peculiar, centrada na apresentação de um projeto de resolução do PS, de si dificilmente isento na matéria e partido que, curiosamente, não permitiu a apresentação de propostas de qualquer outro grupo parlamentar. Um começo em falso para combater notícias falsas.

Uma democracia saudável depende vitalmente de um fluxo de informação saudável, apoiado em meios de comunicação que mantêm os seus cidadãos informados e verificam o funcionamento das instituições. É um pressuposto fundamental que a informação seja fidedigna. Este pacto democrático sofre quando a informação é omissa ou, pior, adulterada para servir alguma agenda. O condicionamento da comunicação corresponde a um condicionamento da verdade. O condicionamento da verdade não serve a democracia. Adicionalmente, a desinformação é também uma arma letal contra o valor da liberdade de expressão. Descredibiliza a liberdade de informação, fragilizando mensagem, canais e autores. O PSD tem um legado em matéria de liberdade de expressão que lhe é caro e que não enjeita: os cidadãos devem comunicar livremente entre si.

O contexto deste debate merece-nos, antes de mais, três notas prévias, enquadradoras de qualquer reflexão:

  • A democracia defende-se na liberdade, na pluralidade, na ética e não na penumbra de expedientes, no silenciamento de iniciativas de outros partidos, ou na busca de protagonismos mediáticos. A democracia defende-se no estudo, no debate e no contraditório.
  • O combate à desinformação faz-se com gente esclarecida e informada, mas também sem excesso de frenesim. O combate à desinformação faz-se seguramente longe dos maus exemplos, conhecidos por fabricar notícias falsas, dos quais o Governo não se afasta.
  • Finalmente, o sublinhar que a responsabilidade não se endossa. Este é um tema onde todos somos responsáveis, enquanto cidadãos, partidos e Parlamento.

Este último ponto é especialmente importante neste contexto: é difícil compreender que o PS restrinja a sua responsabilidade a um projeto de resolução com recomendações para fazer o que o seu Governo já prometeu fazer. Tal só é compreensível com um PS que já começa a desconfiar das promessas do Governo!

A primeira responsabilidade do Estado e dos seus atores em relação à liberdade de expressão é não interferir ou censurar, mas antes, pela sua essência e função regulamentar, assegurar um ambiente favorável a um debate público pluralista e inclusivo com liberdade de expressão. A verdade não é contingente de forças legais ou políticas. Galileu estava sozinho e tinha razão. A primeira responsabilidade do poder é para com a democracia, e a desta para com a verdade.

O combate à desinformação tem, contudo, tanto de importante quanto de difícil. A provar que é um combate difícil está o facto de não ser suficiente, ou fácil, legislar. A única força eficaz no combate é a qualidade das democracias, que não se conquista por decreto. Legislar pode mesmo traduzir-se num ato falhado ou contraproducente, como ilustra o caso negativo paradigmático da Malásia. Mesmo em presença de soluções mais circunscritas e ponderadas – e temos bons exemplos em França, Alemanha, Itália e no Reino Unido –, existe uma crítica de valor maior em democracia: “o perigo de censura”.

No entanto, o combate à desinformação é sobretudo um combate complexo porque uma reflexão e ação sérias têm que passar por um diálogo interdisciplinar e por uma abordagem política multinível. O seu combate apela a um Estado que defenda a liberdade de expressão. Para isso, políticas e regulamentações claras e acionáveis de soberania digital, de concorrência, de direitos de autor, de responsabilização na comunicação, deverão fazer parte da solução.

É certo que as notícias falsas e a manipulação da informação já vêm do mundo analógico. Que o digam os mais velhos com memórias reais da censura, ou escritores como Orwell. No seu infame Ministério da Verdade surge como um duplo aviso ao nosso tempo: por um lado, mostra-nos o poder último, destrutivo e despótico, da desinformação, e por outro o perigo de um Estado sem noção dos seus limites, onde “Quem controla o passado controla o futuro: quem controla o presente controla o passado.”

Também é certo que deixámos que essas antigas práticas e utopias perversas se transformassem em práticas digitais, num mundo onde a velocidade se alterou profundamente, onde impera a lógica de rede, sem pontos nodais nem gatekeepers. Confunde-se o cidadão com o editor, confunde-se o comentador com o jornalista. Confunde-se a Lei e, por fim, a democracia.

A exposição dos cidadãos a uma desinformação em larga escala é um desafio para todos nós. A Internet permitiu uma democracia participativa e inclusiva. A democracia desinformada e manipulada seria disso um péssimo resultado.

Há muito que fazer por entidades competentes, académicos, profissionais e sociedade civil em geral. A reflexão e a ação deverão considerar três etapas:

  1. Motivação: é importante perceber as motivações que subjazem à criação das notícias falsas. É importante assegurar que estas atividades, lesivas para a democracia, não ficam impunes quando detetadas, ou deixadas à mercê de um sistema de Justiça que não está preparado para a sua velocidade, evolução e difusividade.
  2. Disseminação: é fundamental conhecer quais os principais veículos de informação falsa nos media sociais, bem como o tipo de mensagem veiculada. É fundamental melhorar a capacidade de detetar a circulação de informação falsa:
  • Através de algoritmos e funcionários desses canais, como já começa a existir;
  • Através da intervenção cívica, em que os próprios cidadãos detetam e denunciam estas situações;
  • A responsabilização dos canais em que esta informação falsa circula é também um passo essencial.
  1. Impacto e Percepção: é fundamental ter uma análise de quem são as pessoas que a desinformação alcança, quais as mais permeáveis e porquê. É também um fenómeno social, que não existe num vácuo conceptual. Acima de tudo, é necessário formar cidadãos que tenham a capacidade de análise crítica da informação enquanto agentes participativos em democracia.

Ninguém tem dúvidas que, a longo prazo, a aposta na Educação é a “vacina” contra as notícias falsas. No entanto, esta é uma guerra que tem que ser ganha em várias frentes, estando a Assembleia da República na primeira linha. Há que liderar dando o exemplo. Estar a deliberar uma recomendação, já de si parca, antes que o Governo preste contas do que assumiu fazer ou que o Parlamento possa fazer o debate aprofundado sobre a matéria é começar mal. É demiti-lo da sua responsabilidade enquanto órgão máximo da pluralidade democrática, antídoto por excelência contra o sectarismo e a desinformação. O Parlamento tem de assumir essa liderança, na plenitude da representação dos vários partidos em termos normativos e de fiscalização apertada das políticas públicas. Deixar este tema tão essencial nas mãos do Governo, qualquer que seja, é “entregar o ouro ao bandido”, abrir as portas para instrumentalizar esse combate e condicionar o debate público.

Um ecossistema de informação livre, pluralista e bem regulado, baseado em exigentes padrões profissionais, é indispensável a um saudável debate democrático.” Assim conclui a Comissão Europeia na comunicação que publicou em abril do ano passado sobre desinformação. O PSD concorda, naturalmente, com a aplicação do plano de ação contra a desinformação proposto pela Comissão Europeia. Não pode, no entanto, concordar que isso, e mais um par de iniciativas já em curso, substituam um debate que terá de ser duro e profundo. Se queremos combater a desinformação, comecemos então a sério pelo Parlamento. Só com coragem e honestidade, no contexto do mandato democrático que é atribuído aos deputados, podem ser apresentadas, e construídas em conjunto, as soluções que Portugal e a nossa democracia precisam.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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