O caixote

O técnico de bata cinzenta rodou o botão e no vidro grande uns riscos brancos e negros apareceram. Um som irritante invadiu a sala. Aos gritos, o técnico dava instruções ao ajudante que estava no telhado: “Vira para a direita!... Mais um pouco para a esquerda!...”

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Adriano Miranda

Nesse dia andei com “borboletas” na barriga. Nervoso. Ansioso. A hora da entrega do televisor nunca mais chegava. Chegou ao fim da tarde. O homem colocou a escada e subiu ao telhado. Meia hora depois estava hasteado na chaminé um objecto com pontas em alumínio. Chamava-se antena. Na sala, um móvel de fórmica castanha, próprio para receber o tão desejado objecto, tinha um naperon branco, uma espécie de protector anti-riscos, não fosse a novíssima fórmica riscar-se. O homem, um técnico de bata cinzenta, abriu o caixote de papelão e com esforço abraçou o Radiola. Colocado com todo o cuidado no móvel de fórmica castanha, o enorme vidro brilhava. Do lado direito uns botões enormes. Para ligar/desligar, era rodar. Para o som, rodar novamente. Para os canais, era carregar. Eu, como membro mais novo da família, estava expressamente proibido de lhe mexer. Para grande desgosto meu.

O técnico de bata cinzenta rodou o botão e no vidro grande uns riscos brancos e negros apareceram. Um som irritante invadiu a sala. Aos gritos, o técnico dava instruções ao ajudante que estava no telhado: “Vira para a direita!... Mais um pouco para a esquerda!...” Estava à procura do sinal como agulha no palheiro. Até que uma voz apareceu do nada e uma mulher com um bizarro penteado estava a falar para nós. O milagre do sinal estava encontrado. “Aperta, que está bom!”, disse o técnico com voz de dever cumprido. E assim nasceu a aventura televisiva lá de casa. Durou um dia. As válvulas estavam com problemas. A imagem desapareceu. Voltou o técnico. Levou o caixote e, passados uns dias, todo o ritual se cumpriu novamente. A outras horas. Desta vez foi o Marcelo Caetano que nos surpreendeu, depois dos riscos brancos e negros. Ficou a falar sozinho na sala, que as válvulas tinham de aquecer.

Tenho imenso desgosto de não ter hoje o Radiola. Coisas do sentimento. A chegada da TV a cores decretou a morte do Radiola. Passámos a ter um Philips. São enormes as memórias em volta do televisor. Eu preferia o Vasco Granja, o meu pai o Bonanza e a minha mãe o Zip-Zip. E todos víamos o Telejornal. À hora das Conversas em Família dávamos descanso ao televisor. Tal era a minha dependência que a minha página favorita do Jornal de Notícias era a da programação televisiva. De segunda a sexta ia para a cama quando o “Meninos Ladinos” me mandava. Aos fins-de-semana ficava a ouvir o hino nacional com a bandeira ao vento. A emissão terminava. No dia seguinte haveria mais.

Outros tempos. Os tempos do Eusébio, da Amália, de Fátima, das misses e da bolacha Maria. A televisão, para quem a podia ter, era uma janela semiaberta ao mundo. Quem não tinha, recorria ao café mais próximo. Assim se ganhou o hábito de um café, um televisor, mesmo que muitos estejam hoje em dia a pregar para o boneco. Antigamente, não. Os cafés tinham plateias atentas. E discussões acesas. E mesmo nas aldeias sem luz, o televisor era ligado a baterias dos automóveis. A televisão era a grande revolução. A quebra do isolamento.

Outros tempos os de hoje. Já não há Eusébio, mas há Ronaldo. Já não há Amália, mas há Osiris. Fátima continua. E as misses deram lugar a casamentos trogloditas, seja com uma enxada na mão ou ao volante de um automóvel. A televisão continua a ser um caixote, mas agora mais parecido com um caixote do lixo.

São cada vez menos as vezes que ligo o televisor. Só o vício do jornalismo me faz olhar para o caixote. Um vício, digo bem, porque até o jornalismo televisivo está pela hora da morte. A televisão continua a ser um gigante da alienação. Uma panela enorme onde se cozinham o dinheiro, o sexo, o racismo, a discriminação, a exploração de sentimentos, a desinformação, os comentadores alinhados, os jogos de interesses, o arroz de atum e a cataplana. A televisão é uma merda.

Mas existem excelentes profissionais nas redacções das televisões. São esses, os bons, que fazem a pequena diferença. São esses que me levam a carregar no on do comando. São esses que fazem a mesma magia do Vasco Granja quando eu era pequeno e sonhava com o boneco polaco. Agarrado ao ecrã, sem pestanejar, a aprender o mundo. A esses grandes profissionais, o meu agradecimento. Fazem a pequena grande diferença. Tudo o resto é veneno bem tóxico. E tantos são os intoxicados. Até quando? Nem o boneco polaco me soube responder.

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