A propósito da comunicação de Emmanuel Macron aos cidadãos europeus

Macron pode ter ganho temporariamente alguns pontos internamente, mas a possibilidade de se afirmar como líder europeu parece menos séria de dia para dia.

Quando a mensagem do Presidente francês aos europeus foi há dias publicada, comentei-a com alguma dureza no Grupo do Facebook “O Rapto da Europa-The Rape of Europa” porque o seu conteúdo e a atitude em si me pareceram inaceitáveis. O presente artigo resume essa minha reação bastante diferente de algumas intervenções laudatórias posteriores que me surpreenderam.

Reconheço que a eleição de Emmanuel Macron para Presidente da França suscitou esperanças reais em muitos que esperam uma mudança em França e uma liderança europeia forte. É notório que a primeira se esgotou rapidamente. A segunda acaba de ser definitivamente destruída pela frivolidade desta personalidade política, bem patente nas oscilações de 180 graus das suas ideias e da sua prática política ao sabor da conveniência do momento, que fazem com que não possa ser levado a sério. É o que tentarei explicar de seguida.

Sobre a forma da Comunicação

Antes de falarmos do conteúdo da Comunicação, comecemos então pelo significado do gesto, que me parece duplamente intolerável.

Em primeiro lugar, de que autoridade se arroga o Presidente dum Estado-membro para se dirigir directamente a todos os europeus, nas suas línguas nacionais, cidadãos esses que possuem os seus próprios governos e presidentes e não têm qualquer laço político directo com o sr. Macron e, na sua maioria, nem sequer sabem quem é o senhor?

Imagina-se outro presidente ou primeiro-ministro a fazer o mesmo? A sra. Merkel? O sr. Salvini (o verdadeiro presidente de Itália)? O sr. Orbán? O sr. Costa? Ou qualquer um dos outros cujo nome a maior parte de nós, cidadãos europeus, desconhece, como acontece, aliás, com o sr. Macron relativamente aos 500 milhões de habitantes da UE. Quantos já ouviram falar nele? 1 milhão? Admirar-me-ia. E quantos conhecem minimamente as suas ideias políticas? Fora de França e do pequeno mundo da política europeia, alguns milhares, talvez. No entanto, levaram todos em cima com uma lição de Europa, de liberdade, de protecção e de progresso à qual não podem sequer reagir.

Só mesmo um Júpiter que caiu do pedestal pode ter semelhante arrojo. Recordemos que, no seu país, Macron não se dignava sequer até há muito pouco tempo dirigir-se aos seus próprios cidadãos tal era a distância a que se colocava destes.

Macron tem actualmente uma percentagem de rejeição de 70%, nível de impopularidade ao qual raramente caíram os presidentes anteriores, nem mesmo o seu predecessor imediato, que ele criticava por querer ser um “homem normal” e não o “presidente jupiteriano” que ele próprio almejava ser. Daí nasceu esse qualificativo pouco condizente com o simplismo das suas ideias, que nunca mais o largou e que tão mal lhe cai nestes momentos menos felizes, depois do trambolhão que deu do alto do Olimpo empurrado pelos coletes amarelos e por outras desventuras.

E aqui chegamos ao segundo aspecto altamente criticável da comunicação, ainda no que se refere à forma. É que, sem nunca o referir, sem mesmo se dirigir explicitamente aos franceses (os únicos aos quais teria legitimidade política para falar) esta comunicação teve como único objectivo o lançamento da campanha do LREM em França para as eleições europeias, como titulou toda a imprensa francesa do dia seguinte.

Esta circunstância torna a atitude de Macron profundamente dissimulada e desonesta. Recordemos que o LREM está empatado com o RN da sra. Le Pen - e sem segunda volta não há anti-Le Pens que lhe valham. O que esta comunicação significa, por conseguinte, é a utilização de uma pretensa autoridade europeia sobre os cidadãos de outros países para tentar ganhar alguns pontos no seu próprio.

Sobre o conteúdo da Comunicação

A vacuidade do conteúdo da mesma corrobora esta opinião. Senão vejamos.

Nos tempos em que ainda habitava o Monte Capitolino (na versão romana da mitologia que o inspira), em 26 de Setembro de 2017, há apenas ano e meio, Macron foi à Sorbonne anunciar um dilúvio de medidas sobre a Europa, as principais das quais refiro de seguida, mesmo sabendo que a leitura da lista é enfadonha, quanto mais não seja porque mais de 90% desapareceram de vista e já ninguém fala nelas. Em 5 de Março passado o Eliseu publicou aliás um briefing sobre o estado de realização dessas medidas que confirma isso mesmo.

Vale ainda assim a pena tentar encontrar alguns resquícios desse arrebatamento renovador do Presidente principiante no vácuo displicente desta nova Comunicação para podermos concluir sobre a futilidade deste personagem sui generis que é o presidente francês. As medidas que propunha estavam agrupadas por temas.

1. Segurança: criação de uma força de intervenção de defesa comum, de um orçamento de defesa comum, de uma doutrina comum para agir, de um Fundo Europeu de Defesa, de uma cooperação estruturada permanente e de uma iniciativa europeia de intervenção integrada, de uma Academia Europeia de Informação e de uma força comum de protecção civil.

2. Migrações: um espaço comum de fronteiras, asilo e migração, a fim de controlar eficazmente as nossas fronteiras, acolher refugiados com dignidade, integrá-los eficazmente e afastar rapidamente aqueles que não são elegíveis para asilo; um Gabinete Europeu de Asilo; ficheiros interligados e documentos de identidade biométricos seguros; uma polícia europeia de fronteiras; um vasto programa europeu de formação e integração para refugiados.

3. África e Mediterrâneo: uma nova parceria com África, baseada na educação, na saúde e na transição energética; uma ajuda substancial à África a financiar por um novo imposto sobre as transacções financeiras à escala europeia.

4. Um modelo de desenvolvimento sustentável: investimento na transição ecológica (transportes, habitação, indústria, agricultura, etc.) através de um preço mínimo dentro das suas fronteiras e de um imposto aduaneiro europeu sobre o carbono nas fronteiras; desenvolver as interconexões energéticas (“Energy Union”), nomeadamente entre a França, Espanha e Portugal; um programa industrial de apoio aos veículos não poluentes e às infra-estruturas necessárias (estações de carregamento, etc.): assegurar a soberania alimentar, reformando a política agrícola comum e criando uma força de controlo comum para garantir a segurança alimentar dos europeus.

5. Inovação e digitalização: uma Agência de Inovação inovadora, financiando conjuntamente novos domínios de investigação, como a inteligência artificial ou domínios inexplorados; assegurar a equidade e a confiança na transformação digital, repensando os seus sistemas fiscais (tributação das empresas digitais) e regulando as grandes plataformas.

6. Poder económico e monetário: fazer da zona euro o coração do poder económico da Europa no mundo; para além das reformas nacionais, a zona deve dotar-se dos instrumentos necessários para se tornar uma zona de crescimento e estabilidade, incluindo um orçamento que permita financiar investimentos conjuntos e assegurar a estabilização face aos choques económicos.

7. Solidariedade concreta através da convergência social e fiscal: incentivar a convergência em toda a União, estabelecendo critérios que aproximem gradualmente os nossos modelos sociais e fiscais; definir um corredor de taxas de imposto sobre as sociedades; garantir um salário mínimo para todos, adaptado à realidade económica de cada país; regular a concorrência através dos níveis das contribuições sociais.

8. Reforçar os intercâmbios, para que cada jovem europeu tenha passado pelo menos 6 meses noutro país europeu (50% de uma faixa etária em 2024) e para que cada estudante fale duas línguas europeias até 2024; criação de 50 (cinquenta) universidades europeias e de redes de universidades que permitam aos estudantes estudar no estrangeiro e frequentar cursos em pelo menos duas línguas. No ensino secundário, temos de criar um processo de harmonização ou de reconhecimento mútuo dos diplomas do ensino secundário (como o ensino superior).

9. Sobre a democracia na Europa: organizar um debate através de convenções democráticas: durante seis meses, serão organizados debates nacionais e locais, baseados em perguntas comuns, em 2018, em todos os países voluntários da UE.

10. Reforço do Parlamento Europeu com listas transnacionais: a partir de 2019, utilizando a quota de deputados britânicos cessantes, criar listas transnacionais que permitam aos europeus votar a favor de um projecto coerente e comum.

11. A visão para 2024: a UE define a nossa base comum, baseada em (i) valores democráticos comuns e não negociáveis; (ii) um mercado único mais simples e mais protector, combinado com uma política comercial reformada (em três direcções: transparência nas negociações e aplicação dos acordos comerciais; requisitos sociais e ambientais; reciprocidade, com um procurador comercial europeu responsável por verificar o cumprimento das regras pelos nossos concorrentes e punir sem demora quaisquer práticas desleais).

12. Alargamento da UE: se se permitir diferenciações ambiciosas, a UE poderá ser gradualmente alargada aos países dos Balcãs Ocidentais. - Tal exigirá uma reforma das suas instituições, com uma Comissão mais pequena (15 membros).

13. Cooperações reforçadas: diferenciação através da ambição: dentro da UE, aqueles que querem ir mais longe, mais depressa, têm de o fazer sem serem impedidos. A cooperação estará sempre aberta a todos.

14. O impulso franco-alemão: face a estes desafios, o impulso franco-alemão será decisivo. “Porque não fixar o objectivo, até 2024, de integrar plenamente os nossos mercados, aplicando as mesmas regras às nossas empresas, do direito dos negócios ao direito das falências? ».  Este espírito pioneiro e concreto é o do Tratado do Eliseu, cuja revisão a França se propõe iniciar, reflectindo uma nova ambição comum.

15. O Grupo da Refundação da Europa: todos os Estados que aderirem a esta iniciativa poderão lançar um “Grupo da Refundação da Europa” nas próximas semanas. Este grupo acolherá representantes de cada Estado-Membro voluntário e envolverá as instituições europeias. Até ao Verão de 2018, trabalhará para especificar e propor medidas para concretizar esta ambição, com base nos debates das convenções democráticas. Tema por tema, serão analisados os instrumentos necessários para a reconstrução (cooperação reforçada, eventual alteração dos tratados, etc.).”

Agora releiam a Comunicação recente que estamos a analisar. Esperar-se-ia talvez um balanço das cerca de 40 medidas enunciadas ao longo dos 15 pontos anteriores. Nem uma palavra! Na realidade, nada disto era para ser levado a sério e traduzido em acção – nem sequer, na maior parte dos casos, em propostas concretas e viáveis.

Por conseguinte, a primeira conclusão a tirar é que a nova Comunicação não refere esses planos de há apenas 18 meses porque estes falharam rotundamente. Passando por cima desses fracassos como gato sobre brasas, em sua substituição, vemos três novos grandes eixos para a acção europeia: liberdade, protecção e progresso, que conhecerão inevitavelmente o mesmo destino. Provavelmente estaremos aqui de novo dentro de um ano ou dois a fazer um balanço idêntico.

Quanto à liberdade, a primeira medida proposta – e a mais aberrante - é a criação duma agência europeia de protecção das democracias com enviados a cada país para os “proteger” dos ciberataques e das manipulações. Imagina-se a recepção que seria dada a esta espécie de “gauleiter” europeus fiscalizadores do que se passa nos processos democráticos de cada Estado. As outras medidas propostas são, como esta, profundamente atentatórias das liberdades e das soberanias nacionais (para além de totalmente inviáveis politicamente): proibir com regras europeias o financiamento externo dos partidos políticos, bem como os discursos de ódio e de violência, tudo isto bem definido segundo os altos critérios dos iluminados da UE.

Sobre a protecção, e relativamente às migrações, a ideia mestra é a de fazer o que já está feito há muito, mas poucos cumprem (a começar pela França, claro): assumir as obrigações de responsabilidade (controlo rigoroso nas fronteiras) e de solidariedade (nomeadamente financeira), a qual tem estado ausente relativamente aos Estados-membros da margem Norte do Mediterrâneo, sobretudo a Itália e a Grécia, que estão mais ou menos condenadas a tratarem do acolhimento dos migrantes de todo o tipo com os seus próprios recursos e com os efeitos políticos que se conhecem.

Reafirmam-se as ideias de polícia de fronteiras comuns, de serviço europeu de asilo (que os ministros europeus acabaram de reconhecer ser impraticável nos tempos mais próximos, eufemismo que significa que nunca serão criados – dada a clara divisão que a esse propósito existe, infelizmente, diga-se, dentro da UE) e acrescenta-se um novo tratado de defesa e segurança sem precisar o objectivo e o conteúdo.

No que se refere à protecção comercial, Macron pega no conceito caro à sra. Le Pen de “preferência nacional” e aplica-o à Europa, com uma hipocrisia inaudita porque bem sabe que: por um lado, os tratados e acordos de comércio multilaterais e bilaterais que já vinculam a Europa proíbem esse tipo de protecções e punem os que as praticam; e os que estão em negociação ou ratificação com o pleno apoio da França (mas que dificilmente entrarão um dia em vigor por razões que não podem ser aqui desenvolvidas), acrescentam-lhes, pelo menos alguns, cláusulas arbitrais que obrigariam os Estados que activassem tais protecções a indemnizar as empresas estrangeiras potencialmente prejudicadas, sem mesmo podermos beneficiar das protecção dos tribunais nacionais ou do Tribunal de Justiça Europeu. O liberal Macron virou proteccionista, mas não sem se dotar de uma escapatória fácil.

Sobre o progresso, para além de repetir as mesmas medidas que já anunciava há 18 meses e sobre as quais nada, absolutamente nada, foi feito (salário mínimo europeu, Banco Europeu do Clima, etc.), anuncia agora uma supervisão europeia das grandes plataformas digitais, mas sem tocar no assunto “sensível” – o único verdadeiramente importante - da total impunidade com que estas evitam o pagamento de impostos significativos na UE.

Termina propondo a organização de mais uma grande conferência europeia para propor as mudanças necessárias ao projecto político da UE, incluindo (pasme-se!) uma possível revisão dos tratados – com a qual, aliás, acredita que o Reino Unido regressará ao redil.

Da mesma forma como nada se diz sobre as quarenta medidas de há ano e meio, nada temos também sobre os problemas das desigualdades sociais crescentes, da pobreza que persiste na Europa, do aumento em 14,5 % das fortunas dos ultra-ricos franceses em 2018, do desemprego juvenil, do arrefecimento económico, da ausência ou baixíssimo nível de tributação na Europa de muitas grandes multinacionais, de medidas concretas de promoção da convergência económica e social, da reforma do sistema monetário europeu, da “decisiva” vanguarda franco-alemã que perdeu o fôlego, etc.

E nem será necessário relembrar que, entretanto, a Alemanha hesita, na renovação dos seus aviões de combate, entre o Eurofighter e o F/A 18 da Boeing e a Bélgica acaba de adquirir 45 aviões de combate F-35, que a própria França continua a bloquear a interconexão energética do seu país com a península ibérica, que o BCE anuncia mais um programa de auxílio massivo aos bancos europeus, que as discussões das taxas sobre as transações financeiras ou sobre as emissões de carbono estão paradas, etc.

Não admira que um texto tão politicamente vazio de ideias, desligado do actualidade europeia recente e desprovido de substância política séria, tenha sido recebido por toda a Europa como o foi: salvo pouquíssimas excepções, com indiferença geral ou franca oposição – como aconteceu, entre muitos outros que apareceram em toda a imprensa europeia, com os artigos publicados no dia seguinte no Die Welt am Sonntag, pela líder da CDU, Annegret Kramp-Karrenbauer, ou de Laurent Wauquiez, chefe do centro-direita Les Republicains (PPE). Desde então, a distanciação dos políticos europeus (e dos alemães em especial) relativamente a esta iniciativa aumentou, até a matar à nascença.

Por cá, parece que ainda há quem acredite nesta personalidade e nas iniciativas que de vez em quando atira para o ar. Mas a questão de fundo da intervenção de Macron permanece: não é uma forma decente e honesta de fazer política a nível europeu. Macron pode ter ganho temporariamente alguns pontos internamente, mas a possibilidade de se afirmar como líder europeu parece menos séria de dia para dia.

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