“Hoje em dia já ninguém pode tomar a Europa como garantida. Esses dias já acabaram”

Localizado numa colina de Florença, o Instituto Universitário Europeu esteve para ser um centro de investigação de energia atómica. Nele, investigam-se hoje temas relacionados com a União Europeia e ensinam-se "os estudantes — e futuros professores — a questionar as narrativas históricas”

A ideia de criar uma universidade europeia é uma ideia antiga. “Tão velha quanto o projecto de integração europeia”, conta Renaud Dehousse, presidente do Instituto Universitário Europeu, uma instituição académica financiada pela União Europeia, criada em 1976.

“A ideia inicial era criar um centro de investigação de energia atómica, através de uma cooperação entre os países europeus. Não fizemos nada disso. Depois de 20 anos de discussão, o que resultou foi a criação desta instituição, o Instituto Universitário Europeu”, relata Dehousse, que a Setembro de 2016 assumiu a liderança da instituição.

“Do esboço inicial evoluímos para a criação de um centro de estudos avançados, onde investigadores formados nas suas universidades nacionais poderiam escolher a sua especialização na área de ciências sociais e humanas”. Naquela altura, continua, “ninguém estava a falar destas áreas” e, por isso, “não existia uma visão europeia, nem tão pouco um sistema legal europeu”.

Por ser um instituto europeu, o programa académico é mais transversal do que os pares nacionais. “Não somos uma instituição alemã, não somos uma instituição francesa, nem somos uma instituição espanhola ou portuguesa. Nem sequer somos uma instituição italiana, apesar de estarmos em Itália. Ou, por outro lado, podemos dizer que somos ao mesmo tempo alemães, franceses, italianos, espanhóis e portugueses, porque todos eles se sentam nas nossas direcções e têm uma palavra a dizer.”

“Pensemos na disciplina de História. A História é influenciada pelo que chamamos de narrativa nacional. Aprendes uma visão da história que é influenciada pelo que o país quer que os cidadãos pensem acerca da sua criação, das suas conquistas, do seu futuro. Nós não somos uma instituição nacional. Não alinhamos nesse tipo de jogo.” Pelo contrário, vinca, “queremos ensinar os estudantes — e futuros professores — a questionar as narrativas históricas”, garante o especialista em Direito.

“Se olharmos para os actuais problemas da Europa, quais são eles? A questão da migração, das alterações climáticas e da segurança”, enumera. “Todos eles correspondem a desafios que os estados por si só não podem resolver. Exigem cooperação a nível europeu. Até mesmo os governantes nacionalistas como o actual ministro do Interior da Itália, Matteo Salvini, pedem uma maior cooperação entre os países europeus no que diz respeito à regulamentação das migrações, porque sabem que, sozinhos, não há muito que possam fazer. Podem parar um barco, mas não resolverão os problemas que estão a enfrentar.”

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A instituição académica pretende preparar os alunos para trabalharem em instituições europeias Carolina Pescada

“Somos interdependentes, mas faltam programas que capacitem os jovens a entender essa lógica de interdependência e os problemas que ela traz consigo. Por mais que se diga que agora vivemos numa era de interdependência, também sabemos que existe uma contestação sem precedentes da cooperação inter-estatal”, aponta Renaud Dehousse.

“Em todos os países, vemos forças políticas opostas à integração europeia, quer à esquerda, quer à direita, e que se ouvem cada vez mais. Há 20 anos isto não existia. Vivemos num momento paradoxal em que se pode dizer que provavelmente a cooperação transnacional é mais necessária do que nunca. Mas também nunca foi tão difícil”, assinala. A instituição académica propõe-se trabalhar para essa cooperação. “Queremos que as pessoas que formamos sejam capazes de entender melhor essas dificuldades e abordar esses desafios com eficácia, sejam elas as mudanças climáticas, as migrações, a regulamentação dos mercados financeiros ou qualquer área em que haja necessidade de maior cooperação.”

“Hoje em dia já ninguém pode tomar a Europa como garantida. Esses dias já acabaram. Não sei se para sempre, mas por agora acabaram”, avalia o presidente do Instituto Universitário Europeu.

Theo Fournier partilha a mesma opinião. Eurocentrista, o investigador francês de 26 anos considera que estamos a enfrentar as consequências de um boom democrático que encarámos como garantido.

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Theo Fournier está a concluir a sua investigação em processos de democratização. Um dos objectos do seu estudo é Portugal e o 25 de Abril Carolina Pescada

“Crescemos com a ideia de a Europa e a democracia serem algo garantido. Mas agora tenho a sensação de que temos de lutar por isso. Acho que estamos a enfrentar as consequências das outras gerações que não fizeram nada. Que acharam que a Europa era uma coisa garantida após a queda do muro de Berlim ou após a Guerra Fria”, considera o investigador. “Houve este enorme boom de democratização maciça e agora, 20 anos depois, percebemos que nada disto está assim tão garantido. É uma coisa pela qual temos de lutar todos os dias. E nós, nesta comunidade académica, temos de ter isso em consideração. A ponte entre os políticos e os académicos deve ser construída. Temos de preencher esta falha ou haverá outro Brexit”, antecipa. As estratégias para o fazer são um dos pontos abordados na tese que se dedica à comparação entre processos de democratização na passagem de um estado autoritário para uma democracia.

“Pode-se desconstruir a actual narrativa de [Viktor] Órban quando ele diz, por exemplo, que houve uma clara revolução nos anos 90. Na verdade foi uma negociação entre as forças comunistas e as não-comunistas. Se contrariarmos esta narrativa com argumentos científicos, estamos não só a acrescentar valor para esta situação, mas também para transições futuras: pegando nas melhores práticas e aplicando-as a outro contexto.”

A ameaça antieuropeísta

“No geral, os meus amigos são europeístas. Quanto à sociedade francesa? É complicado. A sociedade tem noção de que o projecto europeu é importante, mas não sabe porquê”, critica Theo Fournier. “Existe sempre um problema de comunicação. E a Europa não sabe comunicar. Em França há várias camadas de decisão e cada camada tenta usar dinheiro comunitário europeu sem dizer que vem da Europa. No final da cadeia, que é a população, há um contexto errado.”

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"A responsabilidade de lutar contra os movimentos populistas deve ser assumida também pelos académicos", defende o investigador francês Carolina Pescada

Um problema que é transversal a outros países da União Europeia. “Falando de uma perspectiva polaca sinto que o papel da União Europeia, quer a nível interno, quer a nível externo, está a ser desafiado. Por um lado é bom, porque a torna discutível e abre um debate sobre a União Europeia. Mas não sinto que alguém esteja a falar seriamente sobre a possibilidade da Polónia sair da União Europeia”, considera Grzegorz Kryzanowski, um investigador polaco de 32 anos. Ainda assim, considera que “entre os polacos a opinião pró-Europa continua muito alta” apesar de as sondagens realizadas pelo Eurostat demonstrarem “o crescimento de sentimentos antieuropeus”.

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Para Grzegorz Kryzanowski, estudar no Instituto Universitário Europeu é como "caminhar no meio de uma Wikipédia viva" Carolina Pescada

Mas há perspectivas positivas. “A Europa já passou por crises antes e conseguiu sair delas. Acho que actualmente Bruxelas está a tratar dos desafios de uma forma honesta e humilde e podem conseguir recuperar algum do apoio perdido para os populistas e eurocépticos. Mas para isso vão ter de ser capazes de conseguir convencer os europeus que isto é algo pelo qual vale a pena lutar”, acrescenta o investigador húngaro, Gergo Motyovski.

Para contrariar o aumento deste euroceptismo, “temos de nos perguntar: o que é que a UE oferece aos cidadãos europeus todos os dias?”, recomenda Fournier. “Tens o programa Erasmus e podes viajar de um país para o outo, mas essa realidade corresponde a 5% ou 10% da população”, contrapõe o investigador francês. “A educação é essencial para contrariar este sentimento eurocéptico. E devia ser uma educação da vida quotidiana. Devia começar na escola, o que não se verifica. Pelo menos no sistema de ensino francês.”

No Instituto Universitário Europeu, “estamos expostos a diferentes culturas, mas também a diferentes metodologias de investigação”, realça Svitlana Lebedenko, aluna e especialista em Direito.

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Svitlana Lebedenko está no primeiro ano do doutoramento Carolina Pescada

“Aqui pode-se aprender alguma coisa todos os dias. Podemos falar sobre o Brexit com um escocês e no mesmo dia com um irlandês e a perspectiva é completamente diferente. E depois fala-se com alguém da Estónia, que diz que tem eleições europeias, mas também nacionais. Passa-se para a Grécia e percebe-se que era suposto estar economicamente recuperada e percebemos ao falar com uma amiga que não é o caso. Tornamo-nos mais conscientes do que nos rodeia”, acrescenta Theo Fournier. Podemos escolher não o fazer, mas se escolhermos, podemos aprender muita coisa. E isso muda a nossa mente.”

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