Brincar às greves de fome

Negociar com a polícia obriga a uma logística pesada. Há 17 sindicatos de polícias e muitos não são credíveis.

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Nas últimas três semanas, três portugueses optaram pela greve de fome para protestar contra o governo. Quem estiver distraído, pensará que regressámos à ditadura ou que há um problema inaudito de violação de direitos humanos em Portugal.

Afinal, essa é há muito a arma usada para lutar por direitos básicos quando não há diálogo nem esperança. Em 1909, a britânica Marion Wallace Dunlop fez uma greve de fome na prisão e só foi libertada para não se tornar uma mártir. No ano seguinte, a sufragista Mary Jane Clarke fez greve de fome e morreu três dias depois de ter sido alimentada à força na prisão. Em 1917, a sufragista americana Alice Paul fez uma greve da fome na prisão. Entre 1913 e 1948, Mahatma Ghandi fez 17 greves de fome contra o colonialismo, a discriminação dos intocáveis e a sua prisão arbitrária. Talvez inspirado nele, em 1929, o activista indiano Jatin Das morreu aos 24 anos após 63 dias sem comer. Todos conhecemos Bobby Sands, do IRA, que em 1981 morreu, aos 27 anos, depois de 66 dias de greve de fome. Ou o médico cubano Guillermo Fariñas, que já fez 23 greves de fome para protestar contra a censura na Internet praticada pelo regime de Havana.

Que razões invocam os três portugueses — dois enfermeiros e um polícia — que optaram pela greve de fome? Melhores condições de trabalho. É legítimo. Mas fazer greve de fome para resolver problemas laborais numa democracia que funciona tem um problema evidente: falta-lhe proporção e sentido. Querer elevar os problemas laborais dos enfermeiros e dos polícias de Portugal ao pódio das maiores vergonhas da humanidade tem a mesma leveza de chamar “holocausto” e tudo e mais alguma coisa e um efeito comum: desfaz a hierarquia das coisas. Até a mentira tem uma escala, da menos à mais grave e nem todas — não sei se foi Santo Agostinho quem fez a distinção — merecem respostas iguais.

Antes que a moda pegue, talvez sirva para alguma coisa lembrar quatro coisas:

1. O polícia Ernesto Peixoto Rodrigues, que está há dois dias sem comer em frente ao Palácio de Belém, protesta contra a “falta de respostas do Ministério da Administração Interna (MAI) aos problemas dos polícias”. Nos últimos dias, no entanto, li nos jornais a versão do MAI: no último ano, o governo promoveu 1500 polícias e, ao descongelar a progressão na carreira, deu um aumento salarial a outros 14.203 (três quartos dos polícias do país). Não foi muito? Não. Os polícias ganham mal? Sim. Mas há anos que não havia aumentos e, além disso, o suplemento de função voltou a ser pago durante as férias, depois ter sido suspenso em 2011. Além disso, o MAI diz que vai receber os sindicatos e ainda há dias recebeu um.

2. Negociar com a polícia obriga a uma logística pesada. Há 17 sindicatos de polícias e muitos não são credíveis. Há uns meses li no jornal i que o Sindicato de Agentes da Polícia de Segurança Pública tem 107 sócios e 109 dirigentes e delegados; o Sindicato Independente Livre da Polícia tem 324 sócios e 365 dirigentes e delegados; o Sindicato dos Polícias do Porto tem 36 sócios, 24 dirigentes e 12 delegados; o Sindicato dos Polícias de Braga tem 27 sócios, 19 dirigentes e 8 delegados; a Organização Sindical dos Polícias tem 425 sócios, 284 dirigentes e 141 delegados; a Federação Nacional dos Sindicatos de Polícia não tem nenhum sócio e tem 42 dirigentes e 73 delegados; o Sindicato de Oficiais de Polícia tem 164 sócios, 26 dirigentes e 16 delegados; e o Sindicato Unificado da Polícia de Segurança Pública — de que Ernesto Peixoto Rodrigues é presidente — tem 1369 sócios, 123 dirigentes e 215 delegados. Aqui vão oito: 1457 dirigentes e delegados para 2515 sócios. Se juntarmos a Associação Sindical dos Profissionais de Polícia (7241 sócios, 18 dirigentes e 416 delegados) são 1891 dirigentes e delegados para 9756 sócios. Isto dá um dirigente ou delegado por cada 5 polícias. Se a ideia é fazer greve de fome por causa das coisas que estão mal em Portugal, os polícias podem começar pelo seu próprio “movimento” sindical, que em boa parte existe para dar dias e horas de folga aos polícias: 12h por mês aos delegados e quatro dias por mês aos dirigentes.

3. Quem é que já percebeu o potencial destes pseudo-mártires? André Ventura, o mais próximo que temos do populismo de extrema-direita, e que foi visitar Peixoto Rodrigues a Belém no primeiro dia de protesto. Aliás, o Tribunal Constitucional mandou para trás o pedido de registo do seu partido (Coligação Chega) por ter centenas de assinaturas de polícias que, pela lei, estão proibidos de ter filiação partidária.

4. Os argumentos dos enfermeiros eram parecidos. A 20 de Fevereiro, Carlos Ramalho disse que queria obrigar o governo a negociar, a 21 disse que queria ser recebido por Marcelo Rebelo de Sousa e a 22 suspendeu a greve ao saber que o governo voltara às negociações. Como sabemos, é isso que acontece nas democracias. O enfermeiro Ramalho deu uma conferência de imprensa para anunciar que, “se era necessário um mártir, ele está aqui”. Mas esqueceu-se de que, em Portugal, o regresso dos governos à mesa das negociações é como a chegada da Primavera: são previsíveis.

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