Pedro Moutinho deu a volta ao fado

Depois da bênção fadista de O Fado em Nós (2017), gravado como numa casa de fados, Pedro Moutinho abriu as janelas e deixou-se tentar por outras experiências. Sem deixar de lado a matriz fadista, o novo disco Um Fado ao Contrário, com produção e direcção musical de Filipe Raposo, tem coisas que ele nunca fez. Com o encanto de uma voz que já incorporou a maturidade do tempo.

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Kat Piwecka

Pode parecer brincadeira, ou até provocação, mas Um Fado ao Contrário é tudo menos isso. O novo disco de Pedro Moutinho, que chega hoje às lojas e vai ser apresentado ao vivo no lisboeta São Luiz no dia 12 de Abril, foi buscar o título a um poema de Maria do Rosário Pedreira musicado por Amélia Muge. A ideia do disco não nasceu daí, mas o título ajustou-se-lhe por várias razões, como o fadista explica ao Ípsilon. “Surge para nome do disco porque houve muita mudança, trabalhei com o Filipe Raposo [pianista, aqui na produção e direcção musical] e existem várias coisas diferentes neste disco. Foi isso que fez com que eu usasse essa metáfora, o disco ter coisas que nunca fiz.”

E fê-las ao sétimo disco, depois de Primeiro Fado (2003), Encontro (2006), Um Copo de Sol (2009), Lisboa Mora Aqui (colectânea, 2010), O Amor Não Pode Esperar (2013) e O Fado em Nós (2016). A par de dois poderosos fados clássicos, Maldição (Fernando Farinha) e Foi um bem conhecer-te (Manuel de Almeida), há fados novos e há também canções: Força do mar, um original com letra e música de Márcia; Tragédia da Rua das Gáveas, um clássico de Vitorino; e Uma pena que me coube, que Amélia Muge compôs para o disco Periplus (2012), primeira parceria com o grego Michales Loukovikas.

O nome de Filipe Raposo, pianista e compositor que já trabalhou com outros fadistas (como Camané, irmão mais velho de Pedro, ou Ricardo Ribeiro), já estava na cabeça de Pedro Moutinho quando decidiu avançar para o disco. “Pelo grande músico que é, pelo bom gosto, pela simplicidade. Nos fados tradicionais, ele só os ouviu, não quis fazer arranjos, deixou-os com a essência do fado. No resto, comecei a enviar-lhe repertório, ele gostou muito e isso para mim era muito importante. Ele não complica, é um grande músico a harmonizar, foi uma grande experiência e estou muito feliz com o resultado.”

O tema de abertura do disco é o que lhe dá título, Um fado ao contrário (foi também o primeiro single). Maria do Rosário Pedreira ia-lhe mandando poemas, para ele ver se queria usá-los, e este foi “amor à primeira vista”: “A própria letra é um pedido ao outro: vamos fazer as coisas de maneira diferente, da outra maneira não está a resultar. Isso acontece muito na vida. E a frase do título é muito forte, Um fado ao contrário.”

Isso foi mês e meio antes de iniciar o processo. “A Amélia [Muge] tinha-me dito que gostava muito de musicar um poema de Maria do Rosário Pedreira. Eu lembrei-me que tinha esse, enviei-lho, ela adorou o poema e telefonou-me a dizer: ‘Pedro, fiz aqui uma coisa que acho que está muito engraçada.’ Basicamente, eu pego na letra e quando estou a cantá-la, as palavras começam a vir ao contrário na melodia, em cada verso.”

Uma “amante” chamada fado

Os dois fados clássicos incluídos no disco já eram cantados por Pedro Moutinho nas casas de fado. “Canto mais o Maldição. O Fernando Farinha cantava-o no Fado Bacalhau. Um dia, em casa, comecei a trauteá-lo neste Fado José António [Sabrosa], de sextilhas, uma melodia de que gosto muito. Tem uma introdução na viola, do Pedro Soares, encomendada por mim, só para viola e voz. Achei que além de trazer para a actualidade este poema forte, lindíssimo, devia fazer algo diferente.”

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Pedro Moutinho reúne neste disco vários nomes; Amélia Muge, Maria do Rosário Pedreira, Márcia, Manuela de Freitas, Pedro de Castro ou Filipe Raposo Kat Piwecka

Já o de Manuel de Almeida, Foi um bem conhecer-te, recorda a Pedro outra autoria: “Se este fado aparecesse agora, podia ter sido escrito, por exemplo, pela Manuela de Freitas. Ela usa muito o trocadilho na escrita, e o Manuel [de Almeida], no seu tempo, também tinha esse lado. Já me aconteceu estar a cantar esse poema, numa casa de fados, acabar a primeira quadra [‘Foi pouca sorte encontrar-te/ Mas foi um bem conhecer-te/ O que perdi em achar-te/ Ganhei depois em perder-te’] e ver sorrisos em malta jovem.”

Pois essa ligação, entre Manuel e Manuela, acabou por fazer-se neste disco através de um outro fado, onde Manuela de Freitas escreveu para uma criação de Manuel de Almeida uma nova letra. Com uma particularidade: na música, de autoria dos irmãos Ramos (Casimiro e Miguel), passou a estar uma letra que joga com alguns termos do célebre fado de outro Ramos (Carlos), Não venhas tarde, num sentido bem diferente: se ali havia uma amante a disputar o homem, aqui a “amante” que o atrai é próprio fado.   

Pedro explica: “O Manuel de Almeida, grande fadista, tinha criado uma rapsódia de fados (que eu também canto, mas que até agora nunca gravei), que começa no Fado Pinóia e vai de fado tradicional em fado tradicional. Mandei esta versão à Manuela, dizendo-lhe que nunca ninguém se atrevera a fazer uma letra nova para essa rapsódia, que tem quintilhas, sextilhas, quadras. E ela fez esse Chego tarde, canto o fado.”

Não Manuela de Freitas ficou por aí. Ainda aceitou outro desafio de Pedro, escrevendo Graça da Graça. “Desde o princípio dos anos 60 que várias pessoas brincaram com este tema da graça, como o Carlos Ramos. Propus-lhe que escrevesse em torno desse tema, ela gostou muito da ideia e demorou no máximo dois dias a enviar.” A música, essa, pediu-a a Pedro de Castro. “Conheço-o desde os 16 anos, mas ele nunca tinha composto para mim. Ainda demorou, mas quando me mostrou a música lembro-me de lhe ter dado um abraço. Porque o casamento das palavras com a música é perfeito.”

O mar, um bar e o tempo

O tema que Márcia escreveu, letra e música, é uma balada que assenta na perfeição na voz de Pedro Moutinho: Força do mar. “Inicialmente, eu não conhecia a Márcia”, diz ele. “Mas gosto do trabalho dela. Foi um amigo meu que fez a ponte, para eu falar com ela e ela escrever este tema. Adorei-o, mal o recebi. O Filipe também. E fez um arranjo lindíssimo.” Nele está uma das “ousadias” do disco: Filipe propôs que o tema tivesse uma guitarra eléctrica, criando um arranjo para esta, piano e voz. “Fiquei um bocadinho assustado”, recorda Pedro. Mas o resultado acabou por ser como o mar da canção: “Cresci em Oeiras [onde nasceu, em 11 de Novembro de 1976] e o mar é onde eu vou reforçar as energias. É ali que paro um bocadinho, para acalmar o stress da vida.”

Tragédia da Rua das Gáveas, de Vitorino, andava há muito tempo na cabeça de Pedro Moutinho. “Sempre gostei imenso desse tema, é muito bonito. E já tinha pensado gravá-lo noutros álbuns, mas nunca se proporcionou. Mas agora pensei, com o Filipe, trazê-lo para o disco e dar-lhe aquele toque de fado.” E assim foi, sem perder a raiz.

Por fim, um nome que também esteve associado ao disco desde o início: a cantora e compositora Amélia Muge. “A Amélia ajudou-me bastante, com sugestões e ideias”, diz Pedro. E o primeiro inédito para o disco tem letra e música dela: Aquele bar. “Disse-me que tinha uma ideia, e cantou-mo ao telefone: ‘Vê se gostas.’ E eu adorei logo.”

Além de compor Aquele bar e de musicar o poema de Maria do Rosário Pedreira que dá título ao disco, Um fado ao contrário, Amélia ainda contribuiu com mais três canções: a primeira, Uma pena que me coube (que ela já gravara) entrou pela vontade que Pedro tinha de fazer uma versão sua desta canção. E as outras duas vieram apenas como letras: Não sei se a tristeza é triste, musicada por Filipe Raposo (“que tentou ir ao encontro das características do fado tradicional, daí chamarmos-lhe Fado Raposo”) e Ruas do tempo, com música de José Marques, um fado “muito parecido com o Fado Triplicado” que Pedro julga ter sido composto no início dos anos 1960. “Quem cantava esse fado era o Carlos Ramos, no Baile dos quintalinhos [há também online uma gravação de Alcindo de Carvalho]. Estes versos não são triplicados, são sextilhas. É uma adaptação.”

Os onze fados que compõem o disco, onde o bom gosto dos arranjos se alia ao encanto de uma voz que já incorporou a maturidade do tempo, tiveram outros “cúmplices” nas gravações: Ângelo Freire (guitarra portuguesa), Pedro Soares (viola de fado), Daniel Pinto (baixo acústico), André Santos (guitarra eléctrica) e Quiné Teles (percussão), além de Filipe Raposo ao piano, a par de assegurar a produção e direcção musical.

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