Um espectáculo muito pouco trágico sobre a morte

Alain Platel, Fabrizio Cassol e 14 músicos, na sua maioria africanos, criam uma cerimónia de luto a partir de uma reinvenção do Requiem de Mozart. Ópera-jazz omnívora e pluralista para ver até sábado na Culturgest, Requiem Para L. é o coreógrafo belga (e nós pelo meio) in-your-face com a morte, mas sem querer que nos afundemos nela.

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De galochas escuras num palco que é uma versão em miniatura do Memorial do Holocausto em Berlim, um grupo de 14 músicos, na sua maioria africanos, dança e canta o gumboot, uma dança sul-africana criada por trabalhadores mineiros durante o apartheid. Uma dança turbinada, feita percussão das mãos aos pés e interpretada invariavelmente de galochas (gumboots), com que o coreógrafo e encenador belga Alain Platel, nome fundamental da dança contemporânea europeia, escolheu rematar um espectáculo confrontacional, mas muito pouco trágico, sobre a morte – e, ao mesmo tempo, propor um final improvável para o Requiem de Mozart, que se torna aqui, feitas as contas, mais ou menos de Mozart.

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Há vários anos que a música erudita é business as usual para Alain Platel: Purcell, Bach, Monteverdi, Mahler... agora Mozart Chris Van der Burght

Requiem Para L., a sua mais recente co-criação com o compositor belga e cúmplice de longa data Fabrizio Cassol, é uma reconstrução da obra seminal e intemporal de Mozart, ancorada em músicas populares africanas, sonoridades indianas, ópera e jazz, e arquitectada em conjunto com os 14 músicos deste concerto encenado (já editado em CD) a que o Ípsilon assistiu na MC2 – Maison de la Culture de Grenoble, em França, uma semana antes de chegar à Culturgest, em Lisboa, onde está em cena desta quinta-feira até sábado.

Alain Platel lembra-se bem da primeira vez em que Fabrizio Cassol lhe falou em reinterpretar esta missa fúnebre de Mozart numa peça para palco. “Achei que ele estava doido”, recorda, entre risos, o coreógrafo e director da companhia Les Ballets C de la B, que já passou várias vezes por Portugal. Contudo, Cassol sabia muito bem o que estava a fazer. “Ele percebeu que a morte estava muito presente na minha vida nessa altura, daí o Requiem.” Há vários anos que a música erudita é business as usual para Platel. Purcell estava em La Tristeza Complice (1995), Bach em Iets op Bach (1998) ou pitié! (2008), Monteverdi em vsprs (2006), Mahler em Nicht Schlafen (2016). Também não é a primeira vez que trabalha em parceria com músicos africanos. Em Coup Fatal (2014), que funcionou como aquecimento para esta nova peça, 13 músicos de Kinshasa (República Democrática do Congo) interpretavam o repertório de vários compositores barrocos. Mas em Requiem Para L. “foi tudo mais desafiante”.

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“Não tinha a certeza se se iria conseguir realizar a ideia de reescrever uma obra tão grande e tão icónica, mas quando ouvi os primeiros ensaios soube logo que ia sair dali uma obra-prima”, atira o coreógrafo, sem se arrepender do que acabou de dizer. “Não uso essa expressão em vão. Acho mesmo que fizeram a música de Mozart ainda melhor.” Nesse momento, percebeu qual seria o segundo desafio deste empreendimento megalómano q.b.: “pôr em palco algo tão poderoso quanto a música”. A morte era matéria incontornável, como aliás tem sido, de uma maneira ou de outra, no seu trabalho. Mas aqui queria “ir ao âmago da questão”, sem metáforas. Vamos directos ao assunto, mesmo que isso soe ligeiramente macabro: Alain Platel queria ter, em palco, imagens de pessoas a morrer.

Conversou com um amigo médico, especialista em cuidados paliativos, para ver se seria possível encontrá-las. “Testemunhei a morte em várias ocasiões e fiquei sempre surpreendido não só pela enorme mágoa que sai do corpo nesses momentos, mas também do enorme poder que entra nele”, refere o coreógrafo. Inicialmente, tinha “200% de certezas” de que não iria conseguir levar esta ideia avante. Contudo, durante a pesquisa, soube da situação de Lucie, uma amiga que tinha então poucos dias de vida. “Ela conhecia-me, conhecia o meu trabalho e conhecia o médico. Quando ouviu falar sobre este projecto, aceitou ser filmada enquanto morria e autorizou que usássemos as imagens em palco. Disse-me várias vezes que queria fazer isto.”

A família de Lucie concordou (“são os maiores fãs da peça”), bem como o elenco, mas Alain Platel sabia que estava a meter-se em terreno minado – as implicações éticas desta decisão tiraram-lhe o sono ao longo de vários meses. “Entre a morte da Lucie e a estreia da peça [em Janeiro de 2018] passaram-se sete meses. E durante sete meses tive discussões infindáveis sobre o assunto, colapsos nervosos e muitas dúvidas sobre se tinha o direito de confrontar os espectadores com isto”, confessa. O que o levou a integrar definitivamente o vídeo no espectáculo foram as reacções positivas da sua equipa. “Toda a gente sublinhou a graciosidade e a serenidade das imagens. Apesar de serem muito confrontacionais, não transmitem dor nem choque.”

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Requiem Para L. é uma reconstrução do Requiem de Mozart, ancorada em músicas populares africanas, sonoridades indianas, ópera e jazz, e arquitectada em conjunto com 14 músicos Chris Van der Burght

Corpos que falam

“Quando trabalhas com o Alain, sabes desde o início que vais ser confrontado muito seriamente com a morte. Mas com esta peça foi mesmo do primeiro ao último minuto”, conta-nos o compositor Fabrizio Cassol, director musical de Requiem Para L., coadjuvado pelo músico e maestro congolês Rodriguez Vangama. “Para mim, o mais difícil é ver o espectáculo cem vezes e ver a Lucie morrer cem vezes. Mexe contigo.”

Desta vez, Platel entrou literalmente em modo in-your-face, diz Cassol, e no entanto há aqui uma delicadeza e níveis de oxigénio que não se encontram em alguns dos seus trabalhos anteriores. O tom não é apocalíptico, os corpos não são vorazes, transbordantes. Há um ritmo pendular, movimentos pontilhistas. Uma intimidade do tempo e uma tensão que vão sendo esculpidas pelos músicos através de pequenos gestos, acções, comunicações, pontualmente interrompidos por alguns levantamentos colectivos. “Pouco a pouco fomos desenhando esta coreografia subtil”, explica  Platel. “Parece que eles estão a vaguear pelo palco, e de vez em quando há picos de energia, mas todos estes elementos foram escritos.”

Russell Tshiebua, que compõe o trio de canto juntamente com Boule Mpanya e Fredy Massamba – e que é um dos performers que mais contribui para as diferentes vibrações coreográficas da peça – fala-nos num recreio “com algumas regras”. “Eu adoro dançar, adoro ficar maluco em palco, e com o Alain há essa liberdade. Mas às vezes é bom ter um caminho em cena. Saber porque é que estás a dançar e para o que estás a dançar. Porque é que tens de suar ou porque tens de parar, reservares-te.” Como refere Fabrizio Cassol, o que importa aqui não é o virtuosismo segundo padrões da dança contemporânea, mas como “cada corpo fala”. “O grande desafio foi estabelecer a ligação entre o pessoal e o colectivo, e isso acontece através destes corpos que falam”, observa o compositor. “Quando recebemos as imagens, tivemos de as encurtar para não se ver as pessoas à volta da Lucie e, de repente, era como se os performers fossem a família dela. A cerimónia estende-se a eles.”

E é “a forma como os músicos se relacionam com as imagens”, sem cair no facilitismo da sincronia (apesar de haver alguns elementos coincidentes nas entrelinhas), que nutre “toda a ideia da peça”, nota Alain Platel. “Foi tudo feito com tanto respeito e elegância que aconteceu ali algo difícil de descrever.” Uma coisa é certa: mesmo que as imagens de Lucie possam ser mais ou menos perturbadoras, dependendo da susceptibilidade de cada espectador (há quem saia a meio do espectáculo, há quem no final aplauda de pé e exclame entusiasticamente “putain de spectacle extraordinaire!”), isto é uma cerimónia de luto em que se celebra a vida, e isso não tem necessariamente de ser uma contradição. Nesse sentido, esta peça “pode revelar algo” aos espectadores sobre como se lida com a morte, sugere Alain Platel. “Pelo menos na Bélgica, vejo cada vez mais pessoas a tentar criar outro tipo de acções e rituais nos funerais, mais positivos do que as velhas tradições. Acho que algo pode estar a mudar.”

“Porque é que a morte tem de ser triste?”, pergunta, por sua vez, Russell Tshiebua, enquanto falamos sobre a dimensão pouco lúgubre do espectáculo. “Claro que há muitas pessoas que vivem com a morte diariamente de uma forma violenta, e não podemos banalizar isso. Mas há mortes que merecem ser celebradas. Há sítios, como de onde eu venho, que quando as pessoas velhas morrem, nós não choramos. Por exemplo, levamos para o funeral uma prova de como essa pessoa fez algo de bom por nós”, conta o músico criado em Kinshasa. “O que celebramos não é o facto de essa pessoa ter morrido, é a vida que teve.”

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E o mesmo acontece em Requiem Para L., um tributo a Lucie em que confluem várias tradições fúnebres, sobretudo de diferentes regiões africanas. Os músicos trouxeram danças, músicas e outros elementos das suas culturas (mas também exteriores a elas, como um ritual samoano) para integrar nesta reinvenção do Requiem de Mozart, cuja estrutura confere, por si só, outras tonalidades e temperaturas mais amenas à música, entre a luz e a sombra. Enquanto a obra original “tem um impacto colectivo e épico”, nota Fabrizio Cassol, firmado nos instrumentos de orquestra e nos grandes coros, aqui aposta-se na expressão e no espaço individuais de cada músico, com instrumentos como o acordeão (tocado pelo português João Barradas), guitarra eléctrica, mbira, eufónio e percussão.

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Nas vozes, há duetos e trios que se vão encontrando e desencontrando dentro de si e entre si, cantando em latim mas também em dialectos africanos como o lingala, swahili ou kikongo. Quando todos os músicos se cruzam, a energia é sísmica – e às tantas já temos Russell Tshiebua frenético em palco a mexer na farta cabeleira de Niels Van Heertum (eufónio), duelos de guitarra, cantores líricos que também sabem dançar nesta ópera-jazz omnívora, pluralista e polifónica onde tudo e nada parece estar fora do sítio, e ainda bem (continuamos mesmo em Mozart?).

O tom é de festa, mas vamos com calma. “Queria ter um balanço entre o fazer pouco, o comunicar com as imagens e estas explosões de movimento, mas tinha a certeza de que não podia ser uma dança demasiado alegre, pois isso seria um cliché”, diz Alain Platel. Por vezes, esquecemo-nos de que as imagens de Lucie estão ali. E isso não é por acaso. “Quando há estes momentos em grupo, o Alain cria uma distracção. De repente, o impacto da banda é tão grande que tu falhas o momento em que a Lucie morre”, revela Fabrizio Cassol. “Tudo com o Alain é assim, certeiro, porque ele tem um profundo conhecimento do ser humano, dentro e fora do teatro.”

Uma “sopa sem nome”

Há 30 anos que Fabrizio Cassol está numa relação séria com a música criada fora da Europa, da África à América Latina, do Japão à Índia. Depois de ter feito uma viagem à África Central, o compositor e saxofonista da banda Aka Moon percebeu que a Europa não sabia nada sobre o que se estava a passar fora dela (“o que continua um bocado”). Decidiu, então, “nunca mais” trabalhar a partir de informação tirada de livros e discos. “Tudo tinha de vir da fonte”, num processo de aprendizagem com músicos locais. “Fui fazendo isso em concertos e depois comecei a ser convidado por pessoas fora da música”. Na dança, além de Alain Platel, já colaborou com o congolês Faustin Linyekula, o samoano Lemi Ponifasio ou a belga Anne Teresa De Keersmaeker.

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Segundo Cassol, o trabalho “em partilha” com artistas de várias culturas, como acontece em Requiem Para L., é uma via “positiva e construtiva” para “aproximar pessoas”. Também para Alain Platel isto é uma história em curso há mais de 25 anos. “Desde o início dos anos 90 que trabalho com bailarinos de diferentes etnias e, para mim, sempre foi importante que eles representassem as suas vidas e as suas culturas em palco. Mas agora esse debate está mais presente”, afirma o coreógrafo e encenador, que já foi acusado algumas vezes de apropriação cultural. “Surgem perguntas sobre porque é que um coreógrafo que é um homem branco europeu está a trabalhar com artistas africanos e quais são as dinâmicas de poder”, conta Platel. “Uma das críticas feitas à peça Coup Fatal é que era uma forma demasiado alegre de falar do Congo, um país onde há tantos conflitos. Para os músicos, ouvir isso foi chocante. Disseram: ‘Temos de ser sempre reduzidos a um problema e só falar das coisas más?’”

Russell Tshiebua, que integrou os elencos de Nicht Schlafen e Coup Fatal, fica sempre “muito incomodado” com esse tipo de comentários. “Acho que é uma forma de impedir as pessoas de expressarem as suas paixões”, considera o músico e performer congolês, sublinhando que ele e os seus colegas participam nos processos criativos, aplicando também as suas próprias práticas artísticas. E no caso de Requiem Para L., isso resultou numa “sopa” para qual “ainda não se inventou um nome”. “A ideia não é ‘agora vamos à parte da música africana e depois ao Mozart’”, diz. “O Mozart não terminou o Requiem, portanto que tal estendermos a obra e acrescentarmos outros elementos para criarmos algo novo? Fazer isto sabe bem, e torna toda a gente mais inteligente, unida e forte.” Mesmo com a morte à frente deles, mesmo com a morte à nossa frente.

O Ípsilon viajou a convite da Culturgest

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