Morreu Augusto Cid, figura “ímpar” do cartoon político em Portugal

Conhecido caricaturista, destacou-se também pela sua dedicação ao caso de Camarate, "a grande causa da sua vida".

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LUSA/ANDRé KOSTERS

O cartoonista Augusto Cid morreu esta quinta-feira, aos 77 anos, na sua casa em Lisboa, vítima de doença prolongada, confirmou ao PÚBLICO um familiar.

Além de conhecido caricaturista, cujo traço incidiu sobre algumas das grandes figuras da política em Portugal, como o dirigente comunista Álvaro Cunhal, o antigo Presidente da República António Ramalho Eanes ou o antigo primeiro-ministro Francisco Pinto Balsemão, Augusto Cid também se destacou na escultura e literatura.

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, lamentou a morte do cartoonista na tarde desta quinta-feira, após a inauguração da nova sede da Associação Portuguesa de Esclerose Lateral Amiotrófica. “Eu tinha estado com o Augusto Cid há duas semanas, ainda assim é com grande desgosto que recebo a notícia”, disse Marcelo Rebelo de Sousa aos jornalistas.

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Livro O Superman, 1979, desenho de Augusto Cid Augusto Cid

Augusto Cid destacou-se ainda pela sua dedicação ao caso de Camarate, o desastre aéreo que, em Dezembro de 1980, vitimou o então primeiro-ministro português Francisco Sá Carneiro e o ministro da Defesa Adelino Amaro da Costa. Segundo Marcelo Rebelo de Sousa, Camarate foi mesmo “a grande causa da sua vida”: “É largamente devido ao Augusto Cid que surge no Parlamento acolhida a ideia de não ter sido um acidente, mas um atentado”, sublinhou.

Nascido em 1941, Augusto Cid colaborou com vários jornais e revistas, entre os quais a revista Vida Mundial e os jornais O Diabo, O Independente, o semanário Sol e a estação TVI. Augusto Cid editou ainda o livro Cid, o Cavaleiro do Cartoon e foi autor de várias outras obras. Nos últimos anos, vinha a dedicar-se à escultura: a família destaca nesse âmbito a estátua dedicada a Nuno Álvares Pereira, na Avenida Torre de Belém (Lisboa), inaugurada em Novembro de 2016 pelo Presidente da República. Outra das suas obras enquanto escultor é uma peça de homenagem às vítimas dos atentados de 11 de Setembro de 2001, localizada entre a Avenida de Roma e a Avenida dos Estados Unidos da América, em Lisboa.

“Uma figura ímpar”

O mundo do cartoon em Portugal lamenta “uma perda muito grande”. “O Cid era uma figura ímpar”, começa por dizer Luís Afonso, criador do Bartoon, rubrica inseparável da última página do PÚBLICO e da famosa tira sobre a actualidade futebolística Barba e Cabelo.

Afonso, que “acompanhava desde miúdo” os trabalhos de Augusto Cid, garante que este “era um cartoonista único”, com “um traço único também” e “uma abordagem muito própria às situações”. Luís Afonso destaca ainda o sarcasmo e o “humor bastante corrosivo” de Augusto Cid, que, diz, “contrastavam até com ele próprio, que era extremamente amável no trato”. Já no que toca ao trabalho, Cid “era contundente e até às vezes cruel com os seus alvos”.

Destacando a sua obra O Que Se Passa na Frente?, que aborda a Guerra Colonial, Luís Afonso acredita que “o expoente máximo” de Augusto Cid foi o cartoon político, apontado tanto às figuras do poder como às da oposição, sublinha. “Lembro-me, inclusive, que teve algumas obras apreendidas nos anos 70/80 e alguns problemas com o general Ramalho Eanes, que era Presidente da República na altura”, explica o colega de profissão. 

Quanto ao legado, Luís Afonso acredita que Augusto Cid deixa ao mundo do cartoon “o espírito crítico, a irreverência e também a abordagem e a leitura política das situações muito em cima dos acontecimentos”.

Já António, cartoonista próximo de Augusto Cid cujo trabalho também incide, em grande parte, sobre a Revolução dos Cravos, reage à notícia “com pesar”, atribuindo a Augusto Cid “um lugar de destaque no período da democracia”. Mas não só: “É um grande cartoonista desde sempre”, diz.

“O Cid era um entusiasta, um apaixonado, um militante. E isso atravessou toda a sua carreira”, explica António, referindo-se ao caso de Camarate como um exemplo da coragem política de Augusto Cid. “Ele escreveu um livro, teve julgamentos, foi condenado e continuou sempre a defender que era um atentado, algo que hoje é consensual na sociedade portuguesa”, afirma ao PÚBLICO.

“Persistente e com convicções”

Cristina Sampaio, cartoonista cujas obras lhe valeram, entre outros, um prémio do World Press Cartoon em 2007, afirma que Augusto Cid, além de uma pessoa próxima, “era uma referência desde há muitos anos” (antes ainda de a cartoonista começar ela própria a desenhar). Assinala “o traço muito particular e inconfundível” desse “excelente desenhador”, mas também o seu humor “muito especial” e subtil.

“O que eu admirava nele era o sentido de humor, mesmo que não partilhássemos as mesmas opiniões e não estivéssemos também dentro do mesmo espectro político”, explica Cristina Sampaio. 

Quanto à política, a cartoonista afirma que Cid “era uma pessoa extremamente persistente e que tinha as suas convicções”. “Os desenhos dele sempre foram fiéis a essas convicções. No entanto, eu acho que o humor dele nunca foi vulgar”, nota.

Augusto Cid, que chegou a fazer trabalhos para campanhas publicitárias, era “multifacetado”, diz Cristina Sampaio. “Não era só o cartoon político puro e duro, ele usava também o humor noutras áreas”, acrescenta.

Uma característica que distinguia o autor dos demais cartoonistas portugueses era, acrescenta ainda a cartoonista, “o uso da palavra”, com as suas obras a apresentarem diálogos e balões. Mas não só. “Acho que o temperamento dele está muito espelhado no seu humor e que não deixa de ser gentil. Não é brutal ou, como dizia, vulgar. Tinha os seus alvos preferenciais. A certa altura foi o Ramalho Eanes [que inspirou o livro Eanito, El Estático], depois foi o [Mário] Soares. Mas não deixa de ser com alguma simpatia que os retrata”, conclui. 

"A liberdade do desenho"

A Ministra da Cultura, Graça Fonseca, também lamentou a morte do cartoonista. “Com a morte de Augusto Cid desaparece um olhar comprometido com a causa e o pensamento público, traduzido no comentário político através do cartoon”, disse Graça Fonseca em comunicado.

“Ao longo dos anos, Augusto Cid ensinou-nos a compreender com ironia os paradoxos da vida social e política. O traço fino que materializou no cartoon, na banda-desenhada ou na escultura encontrou sempre na observação da sociedade a liberdade de expressão e o desejo de inquietação”, acrescenta a ministra, salientando a capacidade do autor de “inventar e retratar com humor o país político” e a herança que deixou “da liberdade do desenho, da palavra e da imaginação”.

O corpo de Augusto José de Matos Sobral Cid estará em câmara ardente na Basílica da Estrela, em Lisboa, a partir das 17h desta sexta-feira. A missa de corpo presente realiza-se no sábado, pelas 10h, e as cerimónias fúnebres seguem depois para o cemitério do Alto de São João.

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