Governador da Califórnia suspende pena de morte – é contra a “execução premeditada do povo”

Gavin Newsom, do Partido Democrata, diz que a punição afecta de forma desproporcional a população negra e não serve para dissuadir os criminosos. Presidente Trump acusa-o de se esquecer das vítimas.

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Gavin Newsom foi eleito governador em Novembro e assumiu o cargo em Janeiro Reuters/Mike Blake

A campanha a favor da abolição da pena de morte nos EUA recebeu esta quarta-feira um novo impulso, com a decisão do governador da Califórnia de suspender todas as execuções no seu estado enquanto estiver no cargo. O anúncio é importante para o resto do país porque a Califórnia é, de longe, o estado norte-americano com mais prisioneiros no corredor da morte, e tem servido de bússola para outras questões que eram tabu há poucos anos, como o casamento gay.

A decisão do governador Gavin Newsom, do Partido Democrata, aplica-se aos 737 condenados à morte que estão a aguardar a execução no estado, muitos deles há décadas. Desses 737, 24 já esgotaram todos os recursos possíveis e estariam na primeira linha para serem mortos por injecção letal.

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Nenhum deles será libertado, nem as suas sentenças são comutadas para prisão perpétua. A condenação à morte mantém-se em todos os casos, mas nenhum dos prisioneiros será executado enquanto Newsom for governador da Califórnia – até 2023 se só cumprir um mandato, ou até 2027 se for reeleito.

Ao anunciar a sua decisão, o governador disse que a abolição da pena de morte é um imperativo moral: “Uma sociedade civilizada não pode apresentar-se ao mundo como líder enquanto o seu governo continuar a caucionar a execução premeditada e discriminatória do seu povo.”

Críticas de Trump

O anúncio do governador da Califórnia foi muito criticado pelo Presidente norte-americano, Donald Trump, que é um acérrimo defensor da pena de morte – e que aproveitará o tema para marcar ainda mais as suas diferenças em relação aos candidatos do Partido Democrata nas eleições presidenciais de 2020.

“Desafiando os eleitores, o governador da Califórnia vai suspender as execuções de 737 assassinos. Os amigos e as famílias das sempre esquecidas vítimas não estão contentes, e eu também não!”, disse Trump no Twitter.

Apesar da importância desta decisão para o debate mais alargado sobre a pena capital, a situação dos condenados à morte na Califórnia vai manter-se inalterada a curto prazo, porque o estado já não executa ninguém desde 2006.

Nesse ano, o Supremo Tribunal da Califórnia decidiu que o cocktail de substâncias usado na injecção letal não garante que a morte dos prisioneiros seja indolor e pode até causar um grande sofrimento – o que, a acontecer, seria uma violação da 8.ª Emenda da Constituição norte-americana, que proíbe “castigos cruéis e incomuns” no sistema judicial.

Para que as execuções pudessem ser retomadas na Califórnia, o estado teria de encontrar uma forma que garantisse uma morte sem sofrimento, e esse processo ainda não foi concluído – há uma proposta em cima da mesa, mas os activistas contra a pena de morte têm conseguido adiar uma resposta final dos tribunais, e não se espera que haja uma decisão nos próximos anos.

164 presos libertados

A suspensão anunciada pelo governador Gavin Newsom é importante porque se baseia em questões de princípio sobre a pena de morte, e não em dúvidas sobre a forma escolhida pelo estado para executar os prisioneiros. E, em última análise, a ordem do governador pode sobrepor-se a uma decisão dos tribunais para que as execuções sejam retomadas – para reverter a decisão do governador, só mesmo uma proposta aprovada pelos eleitores do estado.

“A pena de morte discrimina os réus com problemas de saúde mental, os negros e quem não tem dinheiro para pagar uma defesa dispendiosa”, disse o governador. “E não proporcionou nenhum benefício em termos de segurança pública, nem tem valor dissuasor. Consumiu milhares de milhões de dólares dos contribuintes. Mas, acima de tudo, a pena de morte é absoluta. Irreversível e irreparável em caso de erro humano.”

Segundo os dados oficiais, o estado da Califórnia gastou mais de cinco mil milhões de dólares nos últimos 40 anos em todos os aspectos ligados à pena de morte – dos 25 anos, em média, que um prisioneiro passa no corredor da morte, até à renovação e manutenção da sala de execução, passando pelos gastos com as substâncias usadas na injecção letal.

No mesmo período, desde meados da década de 1970, 164 pessoas condenadas à morte foram mais tarde inocentadas e libertadas. E a população afro-americana e latina é muito mais afectada do que a população branca: segundo um estudo de 2005 da Universidade de Santa Clara, na Califórnia, um negro que mata um branco tem três vezes mais probabilidades de vir a ser condenado à morte do que um branco que mata um negro.

Ao todo, a pena de morte foi abolida em 20 estados norte-americanos e é aplicada de forma regular em 12. Nos restantes 18 estão em vigor moratórias, ou então nenhum prisioneiro é executado há mais de cinco anos – o que significa que os governadores comutam as sentenças ou os tribunais decidem não aplicar a pena de morte.

Apoio em queda

A suspensão anunciada pelo governador da Califórnia é também um sinal da crescente oposição à pena de morte, tanto no estado como no resto do país. Apesar de ainda ser apoiada pela maioria dos cidadãos, essa percentagem tem vindo a cair e está hoje nos valores mais baixos desde 1972 – e o trajecto político do governador Gavin Newsom é um exemplo disso.

Eleito em Novembro de 2018 e no cargo desde 7 de Janeiro, Gavin Newsom, de 51 anos, é um opositor de longa data da pena de morte – uma opinião que ainda está longe de ser consensual na progressista e liberal Califórnia.

Nas eleições de 2012, na altura como vice-governador, Newsom foi o único político da Califórnia num cargo a nível estadual a apoiar uma proposta para abolir a pena de morte, o que revela o distanciamento com que os candidatos abordavam a questão há apenas sete anos. Em 2016, voltou a apoiar uma outra proposta com o mesmo objectivo.

Mas a questão da pena de morte na Califórnia não reflecte a imagem de um estado liberal, onde as vozes das estrelas de Hollywood são, por vezes, confundidas com a maioria dos cidadãos: tanto em 2012 como em 2016, os eleitores votaram contra a abolição da pena de morte, embora por margens curtas.

Com a suspensão anunciada esta semana, é a segunda vez que Gavin Newsom toma uma medida vigorosa contra a opinião maioritária na Califórnia, em ambos os casos semanas depois de ter assumido cargos de relevo.

Em 2004, assim que tomou posse como presidente da câmara de São Francisco, Newsom autorizou os primeiros casamentos gay nos EUA, numa altura em que isso era proibido em todo o país e mal visto no seu Partido Democrata – p​or essa altura, o candidato a senador Barack Obama apoiava a união civil dos casais gay mas afirmava que “o casamento é entre um homem e uma mulher”, uma posição que só viria a mudar em 2012.

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