Não estraguem a festa

O dia em que se deixar de poder levar uma criança ao estádio será o dia em que o futebol morreu.

Nunca liguei muito a futebol. Só ligava quando o meu clube ganhava ou quando Portugal jogava. Mas calhou-me em sorte ter uma filha que gosta. Eduquei-a a ser do clube da sua cidade, ou seja, do SC Braga, que isto de apoiar grandes equipas de Lisboa ou do Porto contra a equipa da cidade é como apoiar França, Alemanha ou Inglaterra contra Portugal. Não é grave, mas é ridículo.

Quando me dei conta, tinha uma mini-fanática cá em casa. Tem sido divertido acompanhá-la. Ao futebol devemos alguns dos melhores momentos que tivemos juntos. Por exemplo, em Maio de 2016 fomos os dois ver a final da Taça de Portugal. Foi um dia muito bem passado. Saímos de Braga rumo a Lisboa. Almoçámos com a Vera, uma amiga portista, fizemos apostas e seguimos todos juntos para o Jamor, sendo separados à entrada do estádio. Vermelhos para um lado, azuis e brancos para o outro, que aqui não há misturas raciais. A meio da segunda parte, o Braga apanhou-se a ganhar por 2-0, o Porto reduziu a desvantagem e, no último minuto, empatou. O desânimo tomou conta da nossa bancada.

Toda a gente à nossa volta ficou total e absolutamente convencida de que íamos perder. O desespero era tanto que a minha moça começou a ficar com os olhos lacrimejantes. O pessimismo da bancada — que vira o mesmo filme no ano anterior contra o Sporting — tinha tomado conta dela. Até que lhe expliquei que, naquele momento, tínhamos 50% de probabilidades de ganhar. Perguntou-me o que isso queria dizer e eu respondi-lhe com uma moeda que atirámos ao ar, sendo que, se saísse caras, como saiu, era sinal de que o Braga ia ganhar, como ganhou.

Não ficámos para os festejos, tínhamos uma viagem de algumas horas até Braga e aulas no dia a seguir. Saímos ao mesmo tempo que os portistas, que foram absolutamente correctos, com vários a dar os parabéns à garota, que seguia a meus ombros. Também os polícias nos iam cumprimentando e dando os parabéns — deviam ser benfiquistas e sportinguistas que estavam contentes com a derrota do Porto. Já em casa, descobrimos que estivemos uns bons 30 segundos em destaque na SIC. Imagens que depois seriam repetidas na Praça do Município de Braga, durante os festejos que duraram pela noite dentro. Foi a glória!

Este ano, tornámo-nos sócios de lugar cativo. À desilusão de início de época, a eliminação das taças europeias, seguiu-se uma bela temporada, que nos permite estar neste momento em 3.º lugar. Até há três semanas, lutávamos pelo título. O melhor da temporada foi a meia-final com o Sporting para a Taça da Liga em que chegámos empatados ao intervalo. No início da segunda parte, o Braga passou para a frente, com uma bela jogada, que seria anulada pelo VAR.

A explosão de alegria que se tem no momento do golo não tem paralelo em nenhum dos outros grandes desportos. Num jogo de basquete deve haver para aí uns 80 cestos por jogo. No futebol, são muitos minutos de tensão acumulada, que são libertados naquele momento. Nunca tinha visto o VAR em acção ao vivo. Esperar três ou quatro minutos para descobrir o golo anulado é o anticlímax perfeito. Até ao fim, dominámos o jogo, mas lá acabámos nos penáltis. O Sporting falha o primeiro e festejámos como se tivéssemos marcado. Para, logo a seguir, falharmos o nosso penálti. O Sporting volta a falhar e o Braga voltou a falhar. Nem consigo descrever as emoções que soltámos. Eu só gritava asneiras. A minha filha também — já lhe tinha dito que no estádio não havia pimenta na língua. Ao lado, um tipo deu tal pontapé que partiu a cadeira. A minha menina também queria partir alguma coisa, mas não deixei. Mais uns quantos penáltis e o Sporting ganhou. À nossa volta, toda a gente procurava confortar a minha garota. Ninguém estava tão triste como ela. A sua tristeza serviu de bálsamo. Para a consolarmos, tivemos de fingir que a derrota não era uma desgraça. De tanto fingir, lá nos convencemos e resignámo-nos.

Neste fim-de-semana que passou, fomos ver o Braga com o Guimarães. Um jogo às seis da tarde, contra uma bela equipa, num belo dia. Enquanto caminhávamos para o estádio, vimos adeptos do Guimarães escoltados por polícias bem armados, como se fossem animais perigosos. A dada altura, observámos movimentações estranhas, com polícias a correr e, uns 50 metros à nossa frente, vimos um polícia disparar uma arma. Mais tarde, as notícias disseram que foram tiros disparados para o ar. Soubemos também que houve autocarros de Guimarães apedrejados à chegada a Braga. Ao entrarmos no estádio, lá de cima, vejo uns tipos a chamar-nos (a mim e à minha filha) filhos da puta. Outros adeptos do Braga juntam-se a nós e insultam de volta os vimaranenses. Dentro do estádio, vemos os adeptos do Guimarães enjaulados na bancada. Não sei se para segurança deles ou nossa. Sei que eu, no dia em que entrar num estádio e me vir enjaulado, me virei embora.

Tudo isto será normal. Afinal, já na final da taça entre o Braga e o Porto não pude ficar com a minha amiga portista. A polícia obrigou cada um de nós a ir para a sua bancada, independentemente do que dizia o bilhete. Também no jogo com o Sporting, vimos centenas de polícias armados até aos dentes. Tanto quanto sei, nada se passou, mas todas aquelas armas assustam. E, confesso, não soube bem o que responder à minha filha, quando me perguntou para que eram as metralhadoras e se corríamos perigo.

Tal como contei, no último jogo, pudemos ver as armas em acção. Percebo que há adeptos desordeiros. Sei que a violência nos estádios acontece amiúde. Mas também sei que Inglaterra teve o mesmo problema. Aliás, era bem pior; teriam, possivelmente, os piores hooligans da Europa, que deixavam um rasto de destruição por onde passavam. Mas em poucos anos o problema, depois de algumas tragédias e muitos mortos, resolveu-se. Hoje o futebol inglês é conhecido pelos seus adeptos ordeiros. Ou seja, isto resolve-se desde que haja vontade de resolver.

Até há alguns anos, tinha dificuldades em entender as emoções que rodeiam os jogos de futebol. Hoje, vivo essas emoções com gosto. Num bom jogo de futebol, como naquele contra o Sporting, descarrega-se tudo o que se tem entalado cá dentro. O futebol não é uma alienação, é um escape. Não estraguem isto. Seria uma pena. O dia em que se deixar de poder levar uma criança ao estádio será o dia em que o futebol morreu. Compreendam que da mesma forma que não é normal ver polícia de choque quando se entra para um filme ou um teatro, também não é normal vê-los aos tiros à entrada para o estádio. Não estraguem a festa.

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