Protecção de dados: a quem serve o caos?

O novo regime de protecção de dados está a servir de pretexto para ocultar informações, nomeadamente referentes a contratos públicos, essenciais ao escrutínio da actividade do Estado.

Não, não é um exagero. Caos é o que se pode chamar à confusão generalizada que reina em muitos serviços públicos desde que, há quase um ano, entraram em vigor as novas regras de protecção de dados. Cada qual interpreta a lei à sua maneira, como é capaz, ou como lhe convém. O absurdo vai ao ponto de haver câmaras municipais que barram – com um grosso traço de tinta preta – o nome dos seus presidentes, aquando da publicação obrigatória dos contratos que assinam.

Por incompetência jurídica, por excesso de zelo ou por desejo de manter confidencial, sabe-se lá porquê, aquilo que tem de ser público, autarquias e departamentos governamentais de todo o género estão a dar corpo a um enorme retrocesso na árdua batalha pela transparência na administração pública em curso há três décadas. Batalha esta que tem sido coroada, em grande parte graças à inestimável actividade da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, por importantes vitórias contra um Estado obsoleto, entrincheirado no segredo dos gabinetes.

Foram esses avanços, em prol da transparência, que tornaram possível a efectivação de algum escrutínio, por parte de um número crescente de jornalistas e de outros cidadãos, sobre os mais variados negócios do Estado.

Instrumentos como a Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), o portal dos contratos públicos (base.gov) e o portal da Justiça (publicações.mj.pt) permitiram que se soubesse muita coisa que muita gente pretendia manter escondida. Foi assim que se tornou cada vez mais difícil oferecer chorudos contratos ao pai, ao irmão, à mulher ou ao gato lá de casa, violando todas as leis, para não falar nos mais elementares princípios éticos, sem que ninguém se apercebesse.

No portal Base estão desde 2008 os contratos de aquisição de bens e serviços e os contratos de empreitada e lá se percebia quem é que contratava quem, para quê e em que condições. Percebia-se também qual era o histórico dos contratos celebrados entre o Estado e uma mesma pessoa ou empresa.

Sendo a sua publicação obrigatória, os dados contratuais permitiam chegar a muitas conclusões através de simples pesquisas no Google e no Portal da Justiça, onde está grande parte da informação proveniente do registo comercial. Com esses elementos, a LADA abria depois as portas para que muitos segredos caíssem por terra, permitindo a qualquer cidadão o acesso a muita documentação relacionada com os contratos.

Desde há alguns meses, porém, para gáudio de alguns, as coisas começaram a mudar. O pretexto foi a publicação do Regulamento Geral de Protecção de Dados, um intrincado e interminável calhamaço de normas e contranormas que ninguém entende a não ser, eventualmente, alguns iluminados.

No que respeita à publicitação dos contratos públicos e ao acesso aos documentos administrativos foi ouro sobre azul para quem sempre entendeu – como o primeiro-ministro – que a transparência é um empecilho para os políticos.

Na ausência de regras claras, e perante as óbvias contradições existentes entre o que diz a LADA e o que diz o regulamento de protecção de dados, o receio das pesadas multas previstas neste regulamento, o excesso de zelo de alguns burocratas, a simples incompetência jurídica, ou razões que não se contam a ninguém, levaram ao caos. Hoje em dia, ninguém sabe o que fazer, que dados ocultar, e como os ocultar, nos documentos que são publicados por imposição legal e naqueles que são acessíveis mediante requerimento, ao abrigo da LADA.

É assim, por exemplo, que a Câmara de Lisboa publicou já este mês no Portal Base vários contratos em que apaga com tinta correctora o nome do representante da empresa contratada, bem como o seu domicílio profissional, mas publica os nomes e domicílios profissionais dos responsáveis camarários que intervêm no acto. Sendo que nalguns casos reproduz assinaturas na última página que identificam as pessoas cujos nomes foram expurgados na primeira.

Mais radical é um contrato com a empresa Prestibel, em que, além do nome do administrador que a representa, é ocultado o nome do vereador que assina pelo município e as próprias assinaturas de ambos são suprimidas. Noutros contratos, a autarquia publica o nome e a morada profissional dos representantes da empresa adjudicatária, apagando apenas o número do cartão de cidadão. Noutros, ainda, publica tudo, como fazia antes da nova lei.

No Porto, a câmara vai mais longe. Aplica uma tarja negra sobre o seu próprio endereço electrónico, mas publica o das empresas contratadas. Esconde também o nome dos funcionários responsáveis pela gestão dos contratos, bem como o nome dos vereadores que autorizam as adjudicações e as assinaturas dos intervenientes.

Já em Castelo Branco, vai tudo a eito. A protecção de dados é levada tão a sério que os contratos publicados até têm o nome do próprio presidente da câmara borrado a preto. Tão caricato é o procedimento, que as rubricas que certificam cada folha têm a mesma sorte.

Mas se é assim com a publicação dos contratos no Portal Base, muito pior sucede com os processos administrativos cujo acesso é facultado aos cidadãos pelas mais variadas entidades ao abrigo da LADA. Serviços do Estado central e local estão a fotocopiar milhares e milhares de páginas, seguindo as instruções de dirigentes completamente atarantados, nas quais barram tudo o que lhes cheire a dado pessoal, segredo comercial, informação financeira e bancária, deixando os documentos ininteligíveis. Pior ainda, há quem expurgue esses dados dos documentos originais, danificando-os irreversivelmente. Só falta começar a barrar os nomes das pessoas nos documentos do registo comercial e nas escrituras públicas.

Difícil é encontrar duas entidades públicas que estejam a tratar esta matéria da mesma forma. Uma coisa é certa: independentemente dos ganhos que as novas regras de protecção de dados possam trazer à salvaguarda de alguns direitos dos cidadãos, elas estão a servir para pôr em causa o princípio constitucional da administração aberta e para tornar o Estado mais opaco.

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