Padres, abusos sexuais e argumentos de autoridade

Preciso tanto de ser doutorado em teologia para falar de abusos sexuais na Igreja como preciso de ser crítico de música para falar sobre o apreço que Michael Jackson tinha por rapazinhos.

O padre Gonçalo Portocarrero de Almada resolveu responder ao artigo que na semana passada dediquei aos abusos sexuais na Igreja na sua habitual coluna no Observador, acusando-me de “subserviência aos cânones do politicamente correcto” – uma acusação tão original que impõe réplica.

Enquanto sacerdote da prelatura do Opus Dei, o padre Portocarrero é representante da face mais conservadora do catolicismo, mas esse é o lado para o qual durmo melhor: uma das grandes qualidades da Igreja Católica é a capacidade de acolher no seu seio olhares bastante diversos sobre a doutrina e os caminhos para onde deve evoluir. Os católicos entendem-se no Credo, e a partir daí têm liberdade para discordar em inúmeras questões, sem haver necessidade, como no caso dos Protestantes, de andar a fundar uma nova igreja de cada vez que há um desentendimento.

Nesse sentido, conservadores e progressistas são tão necessários para a Igreja Católica como esquerda e direita são necessários para uma democracia representativa – o conflito entre os dois pólos é importante para o equilíbrio da Igreja, e é dessa dinâmica que nasce a capacidade de renovação e de adaptação ao mundo.

Claro está que isto pressupõe uma atitude que os mais conservadores nem sempre estão disponíveis para assumir: que a Revelação não lhes foi integralmente soprada ao ouvido, e que o acesso à última e mais-que-perfeita Verdade continua vedado neste mundo, a não ser como metáfora. Quer dizer: convém que os cristãos concordem que Cristo é o caminho, a verdade e a vida; mas convém igualmente não confundir isso com um GPS infalível, que a cada momento da existência indica com absoluta certeza que é por ali, só por ali, e que não pode absolutamente ser por outro lado.

Infelizmente, o padre Portocarrero está com frequência convencido de que é a versão católica daquela senhora do Google Maps, que nos manda ir para a direita ou para a esquerda com voz sexy e precisão imbatível. Por isso, ao mesmo tempo que me acusa de ainda não ter percebido que o Concílio Vaticano II “proclamou a igual dignidade de todos os fiéis”, critica-me por andar a perorar sobre temas teológicos quando não tenho competência para tal: “Se os jornalistas se abstêm – e bem! – de opinar sobre matérias científicas, porque o não fazem em relação às questões teológicas, em que a sua competência não é maior?!”

Acho que tenho uma boa resposta para isso: é porque o meu texto não era sobre a diferença entre consubstanciação e transubstanciação, nem sobre a cláusula filioque – era sobre abusos sexuais. E eu preciso tanto de ser doutorado em teologia para falar de abusos sexuais na Igreja como preciso de ser crítico de música para falar sobre o apreço que Michael Jackson tinha por rapazinhos. O padre Portocarrero já escreveu textos acertados sobre os abusos, mas não suporta que aqueles que estão fora da Igreja (suponho que ele imagine ser esse o meu caso) levantem o dedo a denunciar as evidentes dificuldades de tantos padres e bispos para incorporarem a mudança de mentalidades preconizada pelo Papa Francisco.

Em vez disso, o sacerdote do Opus Dei preferiu chamar a atenção para o facto de os abusos sexuais não serem exclusivos da Igreja, desvalorizando aquilo que noutros textos tanto o irrita (nomeadamente no artigo memorável em que conclui que José Manuel Pureza, sendo do Bloco, não pode ser católico): o mais escancarado fariseísmo e a mais escandalosa hipocrisia. Isso, sim, é pouco católico.

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