Mulher para o meu filho: só santa e virtuosa!

É aterrador que mulheres entre os 40 e os 60 anos tenham uma mentalidade tão machista, tão formatada a um modelo de mulher que já não existe há décadas. Elas são responsáveis pela perpetuação destes modelos, pois são mulheres a falar de mulheres.

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TVI

Não gosto nada de paternalismos, venham eles de onde vierem, nem de pseudo-intelectuais que se dizem horrorizados com o “lixo televisivo”. Basta mudarem de canal, ligarem o Netflix ou coisa do género ou, se são tão intelectualmente superiores, há sempre filmes internacionais independentes a ver, livros a ler ou peças de obra, bailado ou teatro a assistir.

Estamos a ser varridos por uma pia intenção televisiva de nos fazer encontrar o amor. O Cupido deve estar de baixa médica e, vai daí, é o Carro do amor, o First Date e, ontem, o Quem quer casar com o meu filho? Ou com um agricultor (porquê esta específica ocupação profissional? Acaso sentir-se-ão mais sós que o resto dos comuns mortais por entre a Natureza?).

Compreendo bem que todos – ou quase todos – necessitemos de programas que nos permitam desligar o cérebro depois de um cansativo dia de trabalho. Aceito perfeitamente que se goste mesmo destes reality shows, pois não andam muito apartados das novelas ou de séries que vamos consumindo.

O que me chocou ontem no Quem quer casar com o meu filho? foram outras coisas. Coloco, desde já, a hipótese de os “concorrentes”, afinal, serem uma espécie de figurantes pagos, bem como as donzelas que, qual montra vestida de Amesterdão, iam passando, uma a uma, perante os olhos inquisidores das mães dos pequenos.

Jovens estes que, a acreditar que isto é mesmo verdade, passam a si mesmo um atestado brutal de inabilidade para encontrar alguém com quem possam ser felizes. E as mães têm de aprovar. Isto diz muito sobre os rapazes e sobre as progenitoras.

Senti-me, de repente, deslocado para séculos remotos em que os casamentos eram arranjados e em que os pais – mas ao menos nisso, aqui, o poder é das mulheres – decidiam do futuro amoroso das suas crias. Só falta assistirem à prima nocte, quais altos dignitários do clero e da corte, nos casamentos de reis e rainhas medievais.

Todavia, o que mais me impressionou foi a mentalidade revelada nas perguntas às candidatas ao filho perfeito, quase todas elaboradas pelas mães e, muitas vezes, coonestadas pelos filhos que, mais tarde, por efeito de imitação que quadra bem a programas destes, eram os primeiros a colocá-las. “Sabe cozinhar? Olhe que o meu filho é de muito sustento…”; “Tem filhos?”; “Já foi casada?”; “Costuma sair à noite?”; “Bebe ou fuma?”.

Estarreci. A mulher de 2019 não pode divertir-se na noite com amigos ou com quem ela quiser, não pode beber uns copos, fumar uns cigarros ou uns “cacetes”, não pode ter sexo casual, deve deitar-se pelas 21h, depois de preparar uma lauta e requintada refeição para o senhor seu marido e seu amo, a quem dirá sempre ámen e elogiará a beleza e inteligência, mesmo que seja um tamanco, mostrando-se ainda sempre preparada para “fazer o amor”, ainda que a desoras, que estes desejos dos filhinhos queridos não conhecem horários.

Se já teve uma relação que por qualquer motivo falhou, então é fruta podre, uma espécie de “produto avariado”, como diz a ASAE – “se o tipo não ficou contigo, algum defeito deves ter” ou “se não serviste para outro, não serves para o meu filho”.

Todos compreendemos que os pais queiram o melhor para os filhos, o que se traduziria, julgo, em que se autonomizem dotados da bagagem psicológica e formativa adequada a conduzirem a sua vida de modo socialmente responsável e fazendo as suas próprias escolhas, livres e esclarecidas. E se correr mal, aguentam-se à bronca, pois isso chama-se… crescer.

É aterrador que mulheres entre os 40 e os 60 anos tenham uma mentalidade tão machista, tão formatada a um modelo de mulher que já não existe há décadas. Elas são responsáveis pela perpetuação destes modelos, pois são mulheres a falar de mulheres. Parece que a crença de que os seres humanos do sexo feminino são os seus piores inimigos encontra aqui uma evidência sociológica.

Quando nos indignamos – e bem – com a violência doméstica, quando as mulheres organizam greves feministas e lutam pela igualdade de direitos, quando se manifestam contra decisões judiciais que têm por inaceitáveis, estão a defender um mundo melhor para todos, homens ou mulheres. Espero, agora, ver essas mesmas pessoas, mulheres ou homens, e as organizações feministas, a denunciarem estas mentalidades cavernícolas e tão desajustadas do nosso tempo.

Apetecia-me tanto que aquilo que vi ontem tivesse sido apenas um pesadelo. Infelizmente, não foi. 

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