Políticos na televisão: “Aparecer! É preciso aparecer!"

“Bom senso e bom gosto”. Ambos devem nortear a relação entre política e entretenimento. “Os entertainers não devem esquecer que estão a colaborar numa campanha política” e os políticos devem “defender a dignidade do cargo que ocupam, que não é deles, é nosso.” O PÚBLICO foi ouvir especialistas sobre a presença de políticos n'O Programa da Cristina.

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Miguel Manso

O primeiro-ministro, António Costa, movimenta-se atarefado atrás do balcão, corta batatas e prepara a cataplana, enquanto Cristina Ferreira e Fernanda Tadeu conversam. O governante socialista está num programa de entretenimento, onde tudo é encenado para dar a ilusão de que está na naquela cozinha como se estivesse na nossa, na de cada um dos espectadores. António Costa põe sal, pergunta se há vinho.

Vai ser uma almoçarada também com os filhos e nora, que estão no estúdio da SIC. Toca a pôr a mesa. Falam sobre tudo. Sobre filhos, casamento, namoricos, até sobre assuntos de Estado, como os trágicos incêndios que assolaram o país.

António Costa não foi o primeiro político a desengravatar-se e a pôr o avental. Já antes, tinham ido ao Programa da Cristina a líder do CDS, Assunção Cristas, cozinhar um despachado arroz de atum; o conselheiro de Estado, Marques Mendes; e a eurodeputada do Bloco de Esquerda Marisa Matias – estes sem panelas.

Apesar do falatório que provocou, a presença de políticos em programas de entretenimento não é nova. Eduardo Cintra Torres, com um doutoramento em Sociologia e mestrado em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação, lembra que, no programa Parabéns, Herman José entrevistou políticos. Outro humorista já o fez, Ricardo Araújo Pereira. Também ao 5 para a Meia-Noite foram políticos. Eduardo Cintra Torres recorda mais: Avelino Ferreira Torres na Quinta das Celebridades e até Santana Lopes no concurso Cadeira do Poder, em 1997. Ainda assim, vê mudanças entre o passado e actualidade: “Tem mudado na quantidade, hoje mais frequente, e na função exibida, como a confecção de comida.”

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António Costa pôs o país político a falar de cataplana Nelson Garrido

José Santa Pereira, professor auxiliar de Ciência Política no ISCTE-IUL e autor de um livro intitulado Política e Entretenimento, considera “completamente diferente” a presença daqueles líderes no Programa da Cristina. Nos programas humorísticos como, por exemplo, o 5 para a Meia-Noite ou nas entrevistas conduzidas por Ricardo Araújo Pereira, “o enfoque continua a ser a política – a ideologia, a mensagem, a bagagem, o desempenho, as gaffes”.

Certo, diz Cintra Torres, é que a presença de políticos em programas de entretenimento tenderá a crescer: “Com a agonia das ideologias políticas, a política tende a tornar-se mais pragmática e a fundir-se com áreas dominantes do entretenimento, como a televisão e o desporto. Os políticos sentem a necessidade de estar onde as pessoas estão – e as pessoas estão a ver entretenimento.”

Pedrógão Grande

No meio da descontracção do programa, também aparecem uns intervalos em que se abordam assuntos nacionais. A questão dos donativos para Pedrógão Grande foi um desses temas, e Eduardo Cintra Torres não gostou de ver: “A mim fez-me impressão, do ponto de vista ético, António Costa falar das vítimas dos incêndios de Pedrógão e dos eventuais desvios de doações enquanto juntava batatas à cataplana.”

Não há uma resposta fechada sobre os efeitos negativos ou positivos deste tipo de programas na mensagem política, é uma moeda de duas faces. “Depende”, diz Santana Pereira.

“Se for bem feito e doseado, é positivo. Promove-se uma imagem dos políticos mais multifacetada e destrói-se a ideia do político como pertencente a um mundo completamente diferente e isolado do das outras pessoas”, explica. Por outro lado, “se for excessivo e mal gerido, é negativo: pode resultar numa excessiva simplificação e banalização da política e dos seus protagonistas, numa folclorização e num empobrecimento da política na esfera pública”.

Felisbela Lopes, investigadora na área dos media, concorda: “Se se começar a exacerbar, tem uma consequência nefasta para a credibilidade dos políticos. Mas humaniza os políticos, serve para se perceber que são pessoas como nós. Na política, o trazer o ‘eles’ para o ‘nós’ é muito longo. Nos programas de entretenimento, é mais curto, mas convêm não banalizar.”

Para a académica, o que é “novo” neste programa é que adquiriu “subitamente” uma “grande visibilidade”: tem mais audiência, tem “uma audiência mais volátil em termos de voto” e entra “nos alinhamentos noticiosos”.

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Assunção Cristas visita, por vezes, bairros sociais Nuno Ferreira Santos

“Este programa começa também a entrar na informação. O telefonema de Marcelo entrou nos telejornais, a cataplana do primeiro-ministro também entrou no espaço informativo. Permite aos políticos apresentarem-se de outra forma nos noticiários”, justifica Felisbela Lopes, para quem os políticos têm “intenção muito clara” quando fazem estas aparições: “Estes programas atingem franjas de audiências que são muito vulneráveis em termos de intenção de voto. Os políticos querem aparecer de forma descontraída, em quadros quotidianos e familiares para criarem empatias com essas audiências.”

Sem populismos

Apesar do formato, a investigadora afasta a ideia de que se possa falar em algum tipo de populismo: “Não podemos olhar para esta encenação do quotidiano com tentações populistas. Estão só a mostrar como são pessoas normais, como o português comum, estão a saltar para o outro lado do ecrã. A casa da Cristina pretende encenar uma casa normal, a encenação é enorme, mas há um efeito espelho.”

No email que enviou ao PÚBLICO, Eduardo Cintra Torres explica que, neste programa, “o pequeno passo em frente – ou atrás, consoante o ponto de vista – é o de cozinharem na ‘casa’ de Cristina Ferreira como fariam em suas casas (e pode ser uma ilusão)”.

E, para já, afasta a palavra “populismo” da reflexão que faz: “Tenho dificuldade em chamar-lhe populismo, mas pode ser um passo nesse sentido se incluído numa estratégia, porque o político que adere a este tipo de exibicionismo público pretender mostrar-se ‘igual’ às ‘pessoas lá em casa’, o ‘povo’. O discurso antielite está implícito, mas, de facto, não chega a ocorrer explicitamente.”

Para José Santana Pereira, “nenhuma das participações de políticos no programa da Cristina Ferreira foi pautada por populismo”, nem no estilo, nem no conteúdo. Para haver um estilo populista, explica, teria de haver “uma excessiva simplificação da linguagem, um enquadramento da realidade que cria ou sublinha uma polarização”, ou “a transmissão da imagem de outsider”. Para se falar em conteúdo populista teria de haver, por exemplo, um “enfoque na dicotomia entre um povo homogéneo e bom e uma elite corrupta, distante ou incompetente”. Mais, diz Santana Pereira: “Duvido que este ou qualquer outro formato transforme em populistas líderes políticos que noutras esferas não o são.”

Apesar do mediatismo que têm aquelas visitas, há um ponto que não convence Eduardo Cintra Torres – a captação de votos. “Pelas reacções que li nas redes sociais, custa-me a crer que, por exemplo, Cristas ou Costa tenham obtido um voto a mais que fosse com os seus cozinhados. Só li elogios dos já convencidos e críticas negativas dos já adversários. Ganharam visibilidade. Como dizia um ministro francês a um amigo na década de 1840: ‘Aparecer! É preciso aparecer!’”.

Que relação deve, então, haver entre política e entretenimento? Apesar de ressalvar não ser uma resposta simples, para Santana Pereira, de uma forma geral, “a política não deve ter medo do entretenimento”, o que não significa colocar “em xeque a importância e a gravidade da acção política”. O “segredo” está, diz, “na moderação e no profissionalismo com que estas incursões” são feitas.

Por outras palavras, as de Eduardo Cintra Torres: “Bom senso e bom gosto. De ambas as partes: os entertainers não devem esquecer que estão a colaborar numa campanha política; os políticos devem, a meu ver, defender a dignidade do cargo que ocupam, que não é deles, é nosso.”

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