Escangalha o telemóvel

A mão precisa de uma ocupação e hoje a sua principal actividade é o scroll. Porventura fazia-nos muito bem, como canta Conan Osiris, “viver e escangalhar o telemóvel”. Haja coragem para isso.

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Robert Bresson

Estava sem sono e fui ler 24/7: O Capitalismo Tardio e os Fins do Sono, editado em 2018 pela Antígona.

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O seu autor, Jonathan Crary, tece uma narrativa insone, convulsa, adictiva, cheia de ziguezagues históricos e filosóficos para chegar a uma importante conclusão sobre este mundo “24/7” em que vivemos: o sono, e nele o sonho, é um reduto inegociável do humano. “O sono é a única barreira que resta, a única ‘condição natural’ firme que o capitalismo não é capaz de eliminar”. Vivemos, hoje, numa economia imparável, 24 sobre 24 horas, cujos ritmos são (e)ditados por essa temporalidade sem tempo, que não conhece dia e noite, chamada Internet. O que é que esta economia da (des)atenção apregoa? As vantagens de uma insónia controlada. O resultado disto? Uma sociedade de “seres-para-a-velocidade”, para usar a expressão de Peter Sloterdijk, remetidos para uma “insularidade digital fantasmática” sem nuances, sem pausas, sem a “inércia restauradora do sono”.

Crary critica o “paradigma conexionista”, em que “o que vale mais é a actividade em nome da própria actividade”. Um estado de irrequietude que nos leva a abominar os tempos mortos. Observo a fauna numa plataforma do metro de Lisboa e conto quantas pessoas não estão de telemóvel em punho, vidradas num ecrã que tocam com o dedo, de cima para baixo, de baixo para cima. Não é toque, não é gesto, não é acção, mas mais um tique nervoso que se disseminou nesta etapa da nossa evolução como espécie. Tenho um amigo que diz que não consegue deixar de fumar, não porque se sinta viciado na nicotina, mas porque, caso abandone o vício do tabaco, deixará de saber o que fazer com a mão que costuma segurar o cigarro. A mão precisa de uma ocupação e hoje a sua principal actividade é o scroll. Porventura fazia-nos muito bem, como canta Conan Osiris, “viver e escangalhar o telemóvel”. Haja coragem para isso.

Onde encontro eu espaços de libertação desta ditadura da técnica e da velocidade? Depois de no sono da cama, no sono da sala escura. Vemos o cinema num estado de semi-vigília, pelo que os filmes são como projectos de sonhos. Crary fala de um preconceito crescente em relação às virtudes e virtualidades do sono. Eu, enquanto cinéfilo, me confesso: nunca concordei com a ideia de que adormecer durante a projecção de um filme seja sinal da pouca qualidade do mesmo. Inclusivamente prezo algumas montagens induzidas pela minha queda num big sleep. Lembro-me que, vencido pelo cansaço dos exames da faculdade, fechei os olhos algumas vez enquanto assistia pela primeira vez a Pickpocket de Robert Bresson na sala Luís de Pina da Cinemateca Portuguesa — Museu do Cinema. Nos intervalos infectados pelo sono, o filme não parava de passar na minha cabeça. Mais tarde, quando revi Pickpocket de princípio ao fim, sem ceder ao sono, apercebi-me que, por efeito dessa montagem criativa da mente, o filme de Bresson tornara-se mais elíptico, a narrativa menos decifrável, as mãos e os objectos dos seus actores-modelos ganharam um outro pathos, uma outra brusquidão e violência. Ainda hoje prefiro a minha versão sonhada.

Luís Mendonça é crítico e docente na área do cinema e da fotografia

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