Da violência doméstica à vertigem bancária

Quando tanto se fala de populismos a nível europeu, estes reflexos cruzados compõem a imagem virtual das ameaças que nos espreitam.

A última semana ficou marcada em Portugal por novos episódios de folhetins de géneros completamente diversos mas onde se entrecruzam os sintomas porventura mais extremos do estado patológico do país: a violência doméstica – ou o agora chamado feminicídio, em que os requintes do horror parecem querer desafiar a avidez cada vez mais insaciável do jornalismo tablóide, num efeito mórbido de atracção mútua – e a vertigem bancária, ilustrada pelo interminável caso do Novo Banco/BES e os abusos do poder pessoal no Montepio.

Nem uma nem outra destas patologias sócio/financeiras são – longe disso – um exclusivo português. No primeiro caso, isso foi patente através das manifestações do Dia Internacional da Mulher que ocorreram em muitos países – e com invulgar expressão no nosso –, tendo como principal factor de mobilização a violência contra as mulheres. Já quanto à desregulação financeira, é bem conhecido o que se passou no mundo depois da recessão de 2008, sem que as suas lições tenham sido suficientemente aprendidas.

No entanto, à escala de um país pequeno e periférico como o nosso as marcas de cada um desses flagelos ganharam uma dimensão inusitada, motivando uma tomada de consciência contra aquilo que se tornou insuportável ou aparentemente inexplicável. A percepção de que os casos de violência doméstica se multiplicam em Portugal, gerando um efeito de mimetismo arrepiante, dá-nos a ver uma sociedade onde os laços afectivos e familiares tendem a entrar em colapso trágico sobretudo entre os estratos sociais médio-baixos e onde se acentuam os fenómenos de exclusão e precariedade, exacerbando a violência sexista. Ora, isso é também acompanhado – como vimos, para além da polémica anedótica, através do caso paradigmático do juiz Neto de Moura – pela incapacidade do sistema judicial em responder oportuna e eficazmente às situações que põem em risco a segurança e a vida das mulheres.

É todo um padrão cultural que está em causa, com reflexos decisivos nos comportamentos sociais e institucionais, nomeadamente na área da Justiça, onde a herança dos valores mais arcaicos tende a prevalecer num Portugal perdido na noite dos tempos. Pois é precisamente isso o que impõe uma emergência máxima na intervenção dos poderes públicos, cuja percepção dos problemas do país fica, tantas vezes, refém de uma miragem europeia ou cosmopolita, enquanto nos mantemos ainda dramaticamente distantes desses horizontes idealizados.

Ora, é outra miragem paralela que alimenta a regeneração miraculosa do sistema bancário ou que faz o ministro das Finanças declarar – aparentemente convicto mas contra todas as evidências – que os contribuintes não terão de vir a pagar os mais de mil e tantos milhões de euros injectados agora num banco supostamente “novo” e “bom” mas, afinal, bem velho e péssimo, carregando consigo o trágico legado do BES (um legado de que estaremos muito longe de libertar-nos). Quando tanto se fala de populismos a nível europeu, estes reflexos cruzados de um país assaltado pelas pragas da violência doméstica entre as classes médio-baixas e dos desvarios do dinheiro entre as elites à sombra do poder constituem um típico caldo da cultura populista e compõem a imagem virtual das ameaças que nos espreitam. Não basta confiar, por isso, num Presidente capaz de despoletar essas ameaças encarnando um populismo “bom” ou num primeiro-ministro que conquista a guerra das audiências cozinhando uma cataplana no programa da Cristina.

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