A violência de que somos cúmplices

Olhamos para a violência concreta como sendo algo excepcional. E a violência sistémica, abstracta, anónima, regular e tantas vezes invisível a que somos submetidos?

A violência concreta choca-nos. É normal. Dão-nos rostos. Vítimas e carrascos. Fornecem-nos estatísticas. Dizem-nos que alguém é oprimido a cada minuto. A urgência invade-nos. Exigimos acção imediata. Tudo nos surge a preto e branco. O consenso social estabelece-se. E tomam-se medidas políticas, como aconteceu agora com a violência doméstica, embora se actue sobre consequências e pouco sobre causas. Melhor do que nada, dizem-nos. Não há tempo a perder, reforçam. E calamo-nos.

Não critico. Constato. Participo na mecânica. Desejo que essas formas de violência sejam erradicadas. Mas ao mesmo tempo penso. Por norma olhamos para essa violência visível e directa, perpetrada por agentes corpóreos, sujeitos malévolos ou turbas fanáticas, como se fosse uma espécie de elemento intrusivo no funcionamento habitual das nossas vidas. Apreendemos com nitidez os contornos dessas crueldades. Mas também podemos ficar hipnotizados por elas. Essa excepcionalidade pode fazer-nos esquecer da violência sistémica, abstracta, anónima, regular e tantas vezes invisível a que somos submetidos. Faz-nos acreditar que a violência é um corte com o quotidiano. Mas será que é mesmo assim?

Alguns governantes dizem-nos que, apesar da situação do país ou da Europa, não se vislumbra violência. Não sei por onde andam. Por onde ando vejo desigualdades, exclusão, precariedade, desemprego, política reduzida à tecnocracia, falhas de representatividade democrática, modelos económicos obsoletos; pessoas a lutar pela sobrevivência, sem auto-estima, zangadas, presas a lógicas de competição desenfreada, acordando muitas às 5 da manhã para regressarem a casa à hora de jantar com ordenados de miséria, deprimidas, ansiosas, doentes, sem futuro; pessoas marcadas pelo estado de urgência permanente em que vivemos e por uma violência omnipresente, cerrada, de que ninguém fala. Não abre telejornais. Não é capa de jornais.

Não é difícil de perceber porquê. É uma violência sistémica disseminada. Não produz efeitos espectaculares. É cheia de zonas cinzentas, a que nem sempre se consegue aceder. Não pode ser simbolizada por um rosto. Os responsáveis somos todos nós que nos resignamos a viver, como se fossemos zombies, segundo um modelo capitalista predatório que se vai transmutando independentemente de ideologias, governos ou regimes.

Poder-se-iam imaginar alternativas. Mas os que detém o poder — ou os que são privilegiados por ele — preferem pensar que não as há, e quem as poderia idealizar parece ter sempre algo mais essencial para fazer no imediato. Interrogar essa violência de forma séria implicava pormo-nos em causa, enquanto colectivo e indivíduos. E ninguém gosta de se colocar em causa.

Apetece perguntar: quantos milhões terão morrido por patologias ligadas a alterações económicas e condições sociopolíticas, decorrentes dos modelos desregrados onde estamos imersos? Que correlação haverá entre o paradigma socioeconómico dominante e formas de violência? Não há estatísticas. Até a proclamação de violências ideológicas de outros tempos (fascismo ou comunismo) parece fácil em comparação. Afinal, até existe um manifesto comunista. Não existe nenhum manifesto do capitalismo desregulado. Mas milhões sofrem em resultado do mesmo.

Não estamos perante um processo objectivo que alguém tivesse planeado ou executado. A responsabilidade é denegada. É uma violência sem rosto. Mas impiedosa e destruidora. A verdade é esta: só estaremos aptos para atenuar as diversas violências quando formos capazes de destrinçar as muitas formas como se exercem e como acabam por se interligar.

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