Testemunhas-chave no julgamento dos Comandos sob investigação por falsas declarações

Procuradores pediram inquérito a recrutas que entraram no mesmo curso dos colegas que morreram. Estes justificam que não se lembram do que disseram ou não leram auto de declarações que assinaram.

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O Curso 127 começou com 67 instruendos dos quais 23 concluíram com sucesso tornando-se Comandos DR

No julgamento de 19 instrutores do curso 127 dos Comandos, no qual morreram dois recrutas de 20 anos, pelo menos quatro testemunhas, instruendos da mesma formação, estão a ser investigadas por declarações falsas proferidas no tribunal. Dessas quatro testemunhas, três integravam o grupo de Hugo Abreu, o jovem que morreu no Campo de Tiro de Alcochete onde decorria a Prova Zero no dia 4 de Setembro de 2016.

O procurador José Niza e a magistrada que entretanto o substituiu no julgamento, Isabel Lima, enquanto representante do Ministério Público (MP), pediram para que fossem extraídas certidões e abertos inquéritos-crime no Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa. 

No sábado passado, o PÚBLICO revelou que também o coronel Filipe Carvalho Dores Moreira, ex-comandante do Regimento dos Comandos, foi constituído arguido por falsificação de provas num processo relacionado com este estando em causa a autenticidade de um Guião da Prova Zero que entregou à investigação.

Neste caso relativo aos recrutas que são testemunhas no processo, a quarta testemunha sob investigação foi instruendo do grupo de Dylan da Silva, o soldado internado nessa mesma noite e que morreu uma semana depois no Hospital Curry Cabral por falência de órgãos resultante de golpe de calor provocado por desidratação extrema – como no caso de Hugo Abreu. Os pedidos para abrir inquérito estão no processo principal, consultado pelo PÚBLICO.

Todos estas quatro testemunhas estão entre os instruendos que descreveram episódios ocorridos no primeiro dia da instrução determinantes para sustentar a acusação, como comprova o despacho da procuradora Cândida Vilar de 20 de Junho de 2017, por crimes previstos no Código de Justiça Militar. Continuam a ser militares mas não trabalham no Regimento dos Comandos. No julgamento, alegaram não se lembrar do que tinham dito e não relataram os eventos da forma que o tinham feito na fase de inquérito.

Por exemplo, um desses instruendos disse nessa altura que “não existiam condições de segurança para continuar [no curso] face ao tipo de tratamento a que foi sujeito”; outro colega do grupo dos graduados – o de Hugo Abreu – referiu que abandonou o curso porque “cuspia e urinava sangue”, e que, apesar de relatar estes sintomas ao capitão-médico, este lhe teria dito que isso era “normal”. Desistiu “temendo pela sua vida”, lê-se no processo.

Além destas testemunhas-chave, na mira do MP, um outro instruendo do curso 127 negou recentemente em tribunal ter dito na fase do inquérito no DIAP que desistiu de ser Comando por não se “sentir seguro em fazer um curso em que os instrutores demonstram não zelar pela vida dos seus instruendos”. 

O advogado Ricardo Sá Fernandes, em representação dos pais de Hugo Abreu e do pai de Dylan da Silva, pediu ao colectivo de juízes que fossem lidos no julgamento os excertos de depoimentos deste instruendo.

"Nenhuma falsidade” apontada

Todas as inquirições conduzidas pelo MP e Polícia Judiciária Militar (PJM)​ – ​entre o fim de 2016 e o início de 2017 – estão transcritas nos autos do processo que pode ser consultado. Os mesmos autos foram objecto de análise na fase de instrução, em Janeiro de 2018. Além disso, argumenta Ricardo Sá Fernandes, ao l​ongo destes mais de dois anos, não foi alegado por nenhum arguido ou seu defensor que houvesse "falsidade” dos depoimentos.

Resulta daqui que “tem de [se] presumir que os autos relatam o que as testemunhas disseram a quem tomou as suas declarações”, lê-se no requerimento do advogado.

Sá Fernandes explica ao PÚBLICO por que fez o pedido relativamente a esta testemunha e não a outras: “Este pareceu-me o caso mais gritante. Sendo certo que o Ministério Público tem requerido a leitura [em tribunal dos depoimentos] de todos os instruendos que dizem agora ter-se esquecido do que aconteceu, neste caso pareceu-me necessário um tratamento mais exaustivo” do teor desses depoimentos.

E o que tinha dito esta testemunha aos investigadores? Manifestou preocupação porque Hugo Abreu, ainda antes de ser socorrido, não respondia “a nenhum contacto”, tinha “os olhos revirados”, “só espumava saliva branca e as mãos estavam frias” e “tinha a cara e a boca cheia de terra”, lê-se no processo. Por estar preocupado, dirigiu-se a um dos dois instrutores responsáveis pelo grupo, alertando-o para a necessidade de prestar “ajuda médica urgente” ao furriel que acabou por morrer. 

“Agora já tiraste um curso de enfermeiro?”, terá respondido o instrutor, ainda de acordo com o depoimento prestado no MP por esta testemunha em Janeiro de 2017. O jovem retorquiu dizendo que a situação de Hugo Abreu lhe lembrava a de um familiar seu e que lhe parecia que “se fosse socorrido a tempo poderia ser salvo”.

Todos leram e assinaram as transcrições como estando “conforme” aos seus depoimentos. No entanto, alguns afirmam agora não terem lido o que assinaram.

Stress pós-traumático

Outra testemunha, que está sob suspeita de ocultar a verdade, justificou não se lembrar da maioria do que disse na fase de inquérito devido à sua vulnerabilidade física e psíquica resultante do curso. Os relatórios médicos juntos ao processo associam o seu sofrimento extremo e o stress pós-traumático aos acontecimentos do dia 4 de Setembro, em que foi colocado ao lado de Hugo Abreu na enfermaria onde este morreu de paragem cardiorrespiratória umas horas depois. 

Nos depoimentos transcritos no processo, uma outra testemunha acusa um sargento instrutor de ter obrigado Hugo Abreu a comer terra, depois de lhe ordenar “agressivamente para que parasse de cuspir”; “como este não o fez, por não conseguir processar qualquer informação”, o instrutor “agarrou num punhado de terra e colocou-a na boca” do furriel Hugo Abreu. O militar, que viria a morrer horas depois, já “não tinha reacção” e “parecia um corpo morto, mas tinha os olhos abertos e continuava a tentar cuspir”.

Foi também este instruendo que, quando inquirido na fase da investigação criminal, descreveu um contexto de agressão, quando recebeu ordem para “rastejar até à ambulância”.

“Como não conseguira rastejar e já estava a ficar confuso”, o encarregado de instrução do seu grupo, segundo a testemunha, “mandou-o levantar-se e ir a correr”, e “como também não conseguiu correr”, o instrutor “começou a dar-lhe pontapés nas costas, com a sola da bota” para que ele “avançasse, provocando-lhe lesões e hematomas”. Já na ambulância “alguém quis dar-lhe água” mas o instrutor não autorizou, dizendo: “Esta cabra manca não merece água.”

Os últimos momentos de Dylan da Silva são descritas por uma destas testemunhas na fase de inquérito. “A cabeça do Dylan movimentava-se de um lado para o outro”, lembra o instruendo que não voltou a ver o amigo, depois de lhe tirar a mochila das costas, e de este lhe dizer “Desculpa! Desculpa”. Um dos instrutores mandou colocá-lo à sombra e despejar-lhe em cima da cabeça um cantil de água, mas o jovem já não recuperou. 

Alguns depoimentos reflectem a preocupação de instrutores e membros da equipa sanitária em situações pontuais por que passaram instruendos. No processo, também estão relatos de quem descreveu, como “normais"​, “empurrões, bofetadas, socos na cabeça e pontapés" por parte dos formadores.

A grande maioria dos militares no banco dos réus pertence ao Quadro Permanente do Exército. Alguns são superiores hierárquicos das testemunhas arroladas pelo MP que ainda não terminaram os seus depoimentos em tribunal ou que por lá já passaram. 

“Alguma vez foi coagido ou ameaçado por algum superior hierárquico para dizer algo que não seja a verdade?”, perguntou um dos advogados de defesa a um militar do Regimento dos Comandos, que foi ouvido esta semana e não está entre os investigados. “Não”, respondeu ele.

Protecção policial

O único instruendo que se constituiu assistente no processo e pediu uma indemnização por “ofensas” durante o curso já deixou o Exército. Quando a juíza lhe perguntou se preferia depor na ausência dos arguidos, disse que não seria necessário. No tribunal, manteve um depoimento coincidente com o da fase de inquérito, e denunciou as mesmas alegadas situações de racionamento de água, castigos e falta de assistência. 

No fim da primeira audiência, solicitou protecção policial. Foi no final de Outubro de 2018, quando a juíza-presidente do colectivo advertiu formalmente os “intervenientes processuais sobre situações de coacção ou ameaça (...) reportadas ao tribunal”. Quando voltou para continuar a depor, na segunda audiência, esteve acompanhado por um agente da PSP. 

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