A geopolítica da energia e a desordem mundial

Ainda estamos longe da premonição de Shakespeare mas cada vez mais um mundo de tolos parece ser governado por loucos, e isso tem de ser revertido.

O antigo ministro francês Hubert Védrine dizia que o mundo é uma imensa assembleia de condóminos, todos se conhecem e sabem quem habita na penthouse. O problema é que o morador da penthouse não quer saber dos outros nem do estado do prédio para nada e entrou na lógica “penthouse first”, que está a mudar a ordem existente. A situação internacional evidencia a política errática e imprevisível dos EUA, a erosão das alianças que sustentavam a ordem liberal, a erosão da democracia e a desconfiança dos cidadãos, a ascensão de potências revisionistas e autoritárias como a China e a Rússia que querem refazer a ordem internacional. A isto acresce a irrelevância e incapacidade da União Europeia para lidar com os seus problemas internos de desaceleração económica, queda de produtividade, estagnação da inovação e ausência de reformas políticas e com os problemas externos que derivam da cascata de crises que a cercam, do Norte de África ao Médio Oriente, da Rússia à Ucrânia. O que se está a passar ao nível da energia é uma espécie de microcosmos da mudança global e das suas tendências dominantes.

Primeiro: com a revolução do “shale gas”, a primeira revolução energética que ocorreu no século XXI, os EUA transformaram-se em poucos anos no maior produtor mundial de gás, à frente da Rússia, e no maior produtor mundial de petróleo, à frente da Arábia Saudita. Com um conceito inovador, que prova uma vez mais a teoria de Schumpeter, os EUA têm três bacias geológicas no seu território – Bakken no Dakota do Norte, Eagleford e Permian no Texas –, sendo que cada uma delas é equivalente a um país do Golfo Pérsico a produzir petróleo e gás dentro do território americano. É isto que está a mudar toda a geopolítica da energia. A maior superpotência do planeta é hoje também uma superpotência energética porque, ao contrário da Europa, não vira a cara aos seus recursos, tem uma filosofia pragmática e consegue conciliar a exploração desses recursos com a sustentabilidade ambiental, e isso é um dos motores de uma economia próspera que favorece a inovação, premeia as novas ideias e se reinventa continuamente. Desta forma, os EUA têm hoje, em cima de todas as vantagens que possuíam, enormes vantagens competitivas nos custos da energia, sendo que o petróleo é 10% mais barato nos EUA do que na Europa, o gás custa duas vezes menos e a eletricidade duas vezes e meia menos. Há muito tempo que venho alertando para as consequências desta revolução energética e as dificuldades que cria à competitividade das empresas europeias. Além disso, os EUA descobriram que o gás, o mais limpo dos combustíveis fósseis, pode contribuir para um futuro de baixo carbono, substituindo o carvão na geração elétrica e térmica, servindo de “back-up” às energias renováveis que são intermitentes, e pode também ser convertido em hidrogénio, o que assegura uma solução a longo prazo. A China está a seguir o mesmo caminho e a transição energética que vai moldar a resposta à ameaça climática pode passar por aqui, com enormes consequências geopolíticas.

Segundo: como os EUA são hoje independentes em termos de energia, estão a redefinir as suas prioridades estratégicas e alianças, o que pode levar à sua “retirada” dalgumas zonas do mundo, como é o caso do Médio Oriente. Por outro lado, o seu novo estatuto energético mina o poder da OPEP e reconfigura relações antigas com os países da Península Arábica. A “retirada” dos EUA do Médio Oriente começou com Obama, o “leading from behind” e a saída do Iraque, e continua hoje com Trump com a retirada da Síria. O Médio Oriente está a transformar-se naquilo que Thomas Hobbes descreve no Leviathan. O colapso da ordem e da autoridade exponencia a luta de todos contra todos pela posse de território e recursos e faz emergir Estados falhados como existem hoje na Síria, no Iémen, no Iraque ou na Líbia, o que dá novo fôlego ao terrorismo e a toda a galáxia de atores não-estatais. A luta pela hegemonia política regional entre a Arábia Saudita e o Irão, com a Turquia à espreita, está hoje ao rubro. A luta política é o elemento central desta batalha mas ela mobiliza as fraturas étnicas e religiosas porque os sauditas são árabes e sunitas e os iranianos são persas e xiitas. As intervenções desastradas dos EUA na região, em especial no Iraque em 2003, têm favorecido a ascensão do Irão, como o ayatollah Khomeini prognosticou na sua célebre entrevista de Fevereiro de 1979, a bordo do avião que o trouxe de Paris para Teerão, quando disse: “O mundo islâmico foi dirigido até hoje pelos árabes, foi dirigido pelos curdos com Saladino, foi dirigido pelos turcos com o Império Otomano, chegou a hora dos persas.” Hoje, o Irão tem forte influência no Iraque xiita, na Síria dominada pelo regime alaouita e no Líbano com o Hezbollah. Mas o Irão ampliou a sua influência para sul e sudoeste, no Bahrain onde a maioria da população é xiita, no Iémen onde apoia os Houthis que são xiitas e são guerreiros temíveis, tendo derrotado no século passado o exército egípcio, e na província de Qatif na Arábia Saudita, onde vivem os 12% da população saudita xiita e onde se localizam os principais campos petrolíferos sauditas, entre eles o campo de Ghawar, o maior do mundo.

Terceiro: o menor empenho dos EUA no Médio Oriente cria um vazio que está a ser preenchido pela Rússia e em menor escala pela China. A Rússia domina hoje a Síria, fez uma aliança com a Arábia Saudita e a OPEP para tentar influenciar os preços do petróleo, pacificou a sua relação com a Turquia que é um país importante para assegurar o controlo da rede de pipelines que cercam e abastecem a Europa e a tornam dependente da Rússia. E o último golpe que infligiu à política energética europeia foi selar o projeto do pipeline Nordstream 2, que amarra completamente a Alemanha, faz o by-pass aos países bálticos e à Polónia, enfraquece a Ucrânia e, com a Alemanha como refém, conseguiu subverter as regras da regulação europeia. Quer dizer, a energia reflete de forma gritante a incapacidade da UE de lidar com os desafios com que se confronta, incluindo a ameaça nuclear que resulta do abandono dos EUA e da Rússia do tratado nuclear INF sobre as forças nucleares intermédias, o que deixa a Europa à mercê da Rússia e contando apenas consigo própria face à crescente política isolacionista da administração americana.

Quarto: a situação no Médio Oriente é hoje mais preocupante porque com a crescente desordem estamos a assistir à nuclearização da Arábia Saudita e doutros países que invocam o programa nuclear iraniano como uma ameaça. A isto acresce a mudança de lideranças em que o caso do príncipe saudita Mohamed bin Salman é paradigmático. O regime saudita era uma gerontocracia em que o poder passava de irmão para irmão. A nomeação de um jovem belicoso e aventureiro está a criar instabilidade: promoveu a guerra no Iémen e a disputa com o Qatar, humilhou o Líbano detendo o seu primeiro-ministro em Riade durante semanas, assaltou as elites empresariais sauditas que prendeu num hotel sob o pretexto da luta contra a corrupção, manda assassinar opositores políticos. E o facto de na vizinhança a Índia e Paquistão, duas potências nucleares que já travaram três guerras, se terem envolvido numa grave disputa em Caxemira mostra que a desordem criada na região pode levar a desenvolvimentos perigosos. Ainda estamos longe da premonição de Shakespeare mas cada vez mais um mundo de tolos parece ser governado por loucos, e isso tem de ser revertido.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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