Todas as mulheres conhecem Miss Triggs

A mulher fala e um dos homens diz: “É uma excelente sugestão, Miss Triggs. Talvez um dos homens aqui presentes gostasse de a fazer.”

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Ler a Odisseia de Homero ajuda a perceber Alexandria Ocasio-Cortez, que aos 29 anos, democrata, latina e do Bronx, está a abanar a política americana.

Na New Yorker desta semana, a congressista-furacão disse isto: “A sociedade ainda não sabe lidar com a ideia de que uma mulher pode ser tão poderosa quanto um homem. Mas eu sou tão poderosa quanto um homem e isso deixa-os loucos.”

Vão dizer que é histérica, que o Congresso americano está cheio de mulheres, que Ocasio-Cortez tem um ego maior do que o de Donald Trump, que basta abrir os olhos para ver mulheres poderosas. Neste raciocínio, também aparecem sempre as provas de que “já não é bem assim”: Margaret Thatcher, Hillary Clinton, Angela Merkel, Theresa May.

Esta estratégia tem um problema. Quando nos agarramos às excepções, ignoramos a realidade. Thatcher era a Iron Lady, não era uma mulher frágil como a maioria, mas sim forte como o ferro — e como um homem. Sobre Clinton e Merkel é notado há anos como ambas “se vestem como homens”, com calças e casacos largos tipo tubo, que escondem as formas. Já sei: se fossem mais elegantes, não se vestiam assim — mas alguém acredita que é só isso? Salva-nos Theresa May, e os seus sapatos e colares indiscretos, para mostrar que as mulheres não têm de se disfarçar de homens para entrar no clube do poder.

Não vale a pena fazer de conta de que está tudo a correr bem. O poder pertence aos homens. Não é só o juiz que acha compreensível que um homem bata na mulher que o traiu. Não é só o marido que mata a mulher à pancada — como ainda ontem em Vieira do Minho. Não é só a diferença salarial — o primeiro-ministro António Costa começou a corrigir o problema, mas os especialistas dizem que serão precisos 202 anos para desfazer a injustiça e que até as mulheres ocidentais têm pudor em negociar salários e aceitam as “dificuldades circunstanciais” que as “obrigam” a receber menos do que os homens. Em Portugal, recebemos menos 22% do que os homens. Vimos o que pagavam à directora do New York Times e à editora da BBC na China — chega a ser metade do que os homens na mesma função recebem. Não é só terem calado a senadora Elizabeth Warren quando ela tentou ler uma carta que Bernie Sanders e Ted Kennedy, também senadores mas homens, lerem sem problema. É mais do que isso.

As mulheres foram silenciadas durante três mil anos — para não dizer 200 mil — e a mudança está apenas a começar.

A primeira gravura que Mary Beard reproduz no seu ensaio Mulheres & Poder: Um Manifesto (Bertrand, 2018) é a de um vaso ateniense do século V a.C. que mostra Penélope, a mulher de Ulisses, protagonista de Odisseia, sentada ao tear e filho Telémaco de pé com uma mão na cintura e a outra a segurar um bastão. Não há dúvida sobre quem manda. Na história, Penélope desce do quarto e pede a um homem que está na sua sala que cante uma canção mais alegre. E diz Telémaco: “Mãe, volta para os teus aposentos e retoma o teu trabalho, o tear [...], o discurso caberá aos homens, a todos os homens, e a mim acima de todos, pois meu é o poder nesta casa.” E escreve Beard: “E lá foi ela de volta aos seus aposentos.”

É também Mary Beard, classicista tão erudita quanto polémica, quem chama a atenção para o facto de Telémaco ser “um rapazinho acabado de largar as fraldas” quando manda calar a mãe. “No que toca a silenciar mulheres, a cultura ocidental tem milhares de anos de experiência.” É sobre isso o seu manifesto: até onde conseguimos ver na história ocidental, “há uma separação radical — real, cultural e imaginária — entre mulheres e poder”.

Em 1988 — quando as mulheres já falavam, já votavam e já eram chefes — a cartonista Riana Duncan fez um ponto de situação na revista satírica Punch. À mesa de um conselho de administração desenhou cinco homens e uma mulher. Ela fala e um dos homens diz: “É uma excelente sugestão Miss Triggs. Talvez um dos homens aqui presentes gostasse de a fazer.”

As histórias de Aristófanes, Ovídio e Shakespeare estão cheias de mulheres que, para serem silenciadas, ficaram sem língua (Filomela e Lavínia), foram transformadas em vaca (Io), perderam autonomia da voz (Eco) ou foram decapitadas (Medusa). Agora é difícil cortar a língua às mulheres incómodas como Alexandria Ocasio-Cortez. Mas onde os homens “dão a opinião”, as mulheres “queixam-se”; onde “ele trabalha muito, coitado”, “ela trabalha muito, é péssima mãe”, e se perguntar a dez mulheres à sua volta, confirmará que todas já calçaram os sapatos de Miss Triggs.

Mary Beard acha difícil incluir as mulheres nesta “estrutura já codificada como masculina” e por isso propõe pensar o poder de uma forma diferente: separá-lo do prestígio público. Mas isso é outra crónica.

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