“As mulheres”

É uma “a mulher” de quem deveríamos falar: única, distinta, livre de escolher, livre de ser, livre para existir. Mulher, apenas. Singular e humana.

Neste dia 8 de Março, enquanto as floristas e as lojas de chocolates se animam numa espécie de prolongamento do Dia de São Valentim, poderíamos, desde logo, questionar a comum banalização da expressão “as mulheres”, tanto mais quanto ela não encontra, na linguagem quotidiana, aquele que seria o seu óbvio correlato, ou seja, “os homens”.

E não são inocentes, as palavras. Dizer “as mulheres” é padronizar, homogeneizar, igualar e, por consequência, menorizar, subestimar, desvalorizar.

Qualquer que seja a ordem (e a intencionalidade) dos atributos, ou classificações, com que adjectivamos “as mulheres” (trabalhadoras, mães, “esposas”, donas de casa ou executivas, cuidadoras ou cuidadas...), a utilização do colectivo implica sempre uma forma de negação da identidade individual ou, o mesmo é dizer, de negação do direito à escolha, ao respeito e à liberdade. Implica, afinal, a negação desse simples direito a ser “pessoa”, que está muito para além de ser mulher ou ser homem.

As mulheres”... e de que mulheres falamos, então? Daquelas que não podem viajar, trabalhar, ou ter conta bancária, sem autorização de um tutor masculino? Ou das que compõem a maioria da população de refugiados e que, tantas vezes, se vêem obrigadas a trocar sexo por um prato de comida para os seus filhos? Talvez das que podem ser, legitima e legalmente, assassinadas pelo marido, se cometerem adultério? Ou das que são condenadas a penas de prisão por sofrerem um aborto espontâneo?

Falamos daquelas tantas que, em todo o mundo, são forçadas a casar antes dos 15 anos? Ou das que já sofreram algum tipo de violência física ou psicológica (e que são um terço, à escala global)? Ou, ainda, das que, diariamente, são traficadas, encarceradas e escravizadas para fins sexuais, nesse negócio global cujos lucros só encontram paralelo no tráfico de droga e de armamento?

Falamos, talvez, das que vestem minissaias e usam decotes e, por isso, “estavam mesmo a pedir para ser violadas”? Ou daquelas que ousaram dizer “basta”, a um homem que as maltratava, e que, por dizerem “basta”, morreram?

Falamos daquelas que, estando sós e tendo de sustentar os seus filhos, têm de trabalhar em três sítios diferentes, porque o dinheiro não chega e o pai das crianças simplesmente desertou? Ou das tantas que, com mais de 65 anos, vivem na mais absoluta pobreza ou na mais dura solidão?

Falamos daquelas que não querem ser mães, ou das que acham que ser mãe é a sua missão de vida? Das que querem ter filhos em “produção independente”, ou das que almejam “casar bem”? Das que são “encalhadas” e “hão-de ficar para tias”, apenas porque não querem um homem na sua vida, ou das que, simplesmente, querem outra mulher na sua vida?

Falamos das que têm uma carreira ou das que só querem manter o seu emprego? Das que aspiram ao reconhecimento profissional, ou daquelas tantas que somente esperam o parco salário do fim do mês? Das que fazem investigação de vanguarda ou das que cosem sapatos em fábricas insalubres?

Falamos das mulheres que gerem multinacionais, ou daquelas a quem são controladas as pausas para fazer chichi? Das que se equilibram sobre uns saltos vertiginosamente altos, ou das que arrastam os passos, no esforço de uns tornozelos inchados? Das mulheres de mãos arranjadas e macias, ou das de costas curvadas e pele curtida, pelo trabalho no campo?

É que são tantas “as mulheresde que podemos falar. “Mulheres” para todos os gostos e para todas as conveniências: religiosas, ideológicas, políticas, morais e moralistas...

E é uma “a mulher” de quem deveríamos falar: única, distinta, livre de escolher, livre de ser, livre para existir.

Mulher, apenas. Singular e humana. É que, afinal, mais de um século volvido sobre as primeiras celebrações das lutas femininas, já (nos) merecemos esse direito!

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