As mãos de Isabel não perdem o fio à meada (nem fogem da terra)

As mãos de Isabel trabalham o que o planalto mirandês lhe dá. E o que ela foi à procura de aprender. Lã, mel, plantas, tradições. A oficina em Bragança é uma casinha de outros tempos que a engenheira do ambiente quer transportar para os de agora.

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Isabel Sá à porta da sua oficina em Bragança Teresa Pacheco Miranda

Estava entre o lobo e a aldeia quando encontrou as ovelhas. Raça churra galega mirandesa, “lã bastante desafiante”. E Isabel Sá cheia de ideias, a vê-las a pastar. Na aldeia de Duas Igrejas, em Miranda do Douro, a trabalhar no projecto que tentava mediar o conflito entre o lobo “que não é mau” e a pastorícia — “porque nos interessa proteger os dois” — surpreendeu-se. Diziam-lhe muito que a lã, “uma matéria-prima natural que demora um ano a ser produzida”, em vez de valor, “só trazia problemas”.

A venda “a custos irrisórios” não cobre os gastos da tosquia anual e “muitas vezes os pastores não tinham sequer quem lhes tirasse a lã de casa”. Isabel não lhe resistiu. Porque não resiste a matérias-primas “associadas a elementos culturais da região”, “interessantes”, provenientes de animais autóctones que ajudam na manutenção de paisagens e ainda sustentam parte da população. Ainda assim, como estes animais deixaram de ser seleccionados pela qualidade de lã, esta foi perdendo qualidade. E para que se possa fazer alguma coisa dela, “é preciso escolhê-la bem”.

Isabel, 38 anos, acompanha todo o processo da tosquia, no Verão. Trabalha com três produtores no planalto mirandês. Interessam-lhe rebanhos bem cuidados, “pequeninos”, em regime extensivo. “A lã boa que encontrar, trago toda.” E depois transforma-a, sempre com as mãos. As dela e as das fiandeiras — e de um fiandeiro, “que tem vergonha de dizer que fia” à mão. São estes artesãos que lhe devolvem a lã já em fios. Ela enche-os de cor. Recorre a tintura natural à base de plantas, líquenes e cogumelos ou a corantes sintéticos, para cores mais garridas. Ao projecto que dá “aproveitamento à lã, pagando um preço justo e promovendo ofícios em desuso com a fiação manual, a malha e a tecelagem” chamou Lhana, a palavra em mirandês para lã, recentemente distinguido com um prémio de empreendedorismo e inovação atribuído pela Caixa Agrícola. Além dos fios 100% fiados à mão, vende sabonetes de esfoliação revestidos de lã cardada e depois feltrada e estojos com um kit de iniciação à fiação manual e à malha (com uma mecha de lã, um fuso de madeira feito à mão e instruções também em mirandês).

São esses fios que se espalham pela oficina para onde vai pôr as mãos a mexer, em Bragança, a cidade onde nasceu, estudou e agora vive. “Nunca pensei viver noutro sítio.” Encolhe os ombros: “Sou muito privilegiada. Sou engenheira do ambiente e acho que vivo no sítio mais preservado de Portugal. É uma área muito genuína, muito autêntica. Eu comecei a trabalhar logo mal acabei o curso com monitorização da águia real e da boneli, o que para mim era algo que só aconteceria no topo da minha carreira.” Depois, “as oportunidades foram surgindo”. “Comecei a desenvolver os meus próprios projectos. Fui sempre tendo novos desafios. Vou saindo, vou lá fora ver as coisas e quando volto dou muito valor à qualidade de vida que aqui tenho.”

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Os produtos que Isabel Sá faz, em conjunto com artesãos Teresa Pacheco Miranda

Fala rápido, animada, mexe muito as mãos. Diz o que já tínhamos percebido: “Eu tenho uma mente curiosa, irrequieta, gosto de saber como as coisas se fazem.” Por isso é que quando chegar o Verão, os fios e as máquinas de madeira vão ter de arranjar espaço para as abelhas. A produção de mel, impulsionada por uma reverência ao trabalho destes insectos, é outros dos passatempos que a engenheira do ambiente quer começar a levar a sério. “Não gosto de lhes chamar hobbies para não lhes tirar valor”, desculpa-se, “tenho planos para me dedicar mais a eles”. Os projectos orbitam em redor do trabalho no Pinta, o Parque Ibérico de Natureza e Aventura, e na associação Aldeia, com sede em Vimioso. O nome da associação de preservação da natureza onde trabalha há 12 anos é um acrónimo que junta tudo o que Isabel quer para aquela região: Acção, Liberdade, Desenvolvimento, Educação, Investigação e Ambiente. 

Por lá, dinamiza actividades para “que não se esqueçam as tradições do século XX”, mas também arranja tempo para grandes projectos. O levantamento de toda a etnobotânica da Terra Fria Transmontana que fez deu um livro. Nele, focou-se “na recolha de conhecimento e no uso que as pessoas dão às plantas”: ervas, sementes e saberes. “É quase uma transcrição directa daquilo que eles me contaram, de uma forma muito próxima.”

Ainda não teve tempo de arrumar os materiais da última oficina que organizou. Tinturaria natural. Neste fim-de-semana, vai fazer um curso de introdução aos líquenes. Na semana anterior falou de apicultura, antes de borboletas, poda, fotografia. Já mostrou o ciclo da lã do pastoreio ao tear, em colaboração com pastores e fiandeiras. Já ela prefere “dar cor às lãs” a “perder a paciência” a fazer tricô.

Em todos os projectos a que se atira, junta uma fotografia das pessoas que com ela colaboram. Quase sempre, com idade para serem seus avós. “Não vejo muita gente como eu a pegar nisto. E não tem de ser de forma tradicionalista. Não vejo muita gente a fazer coisas mais… esdrúxulas”, ri-se, recordando o adjectivo que um desconhecido usou para a descrever. O território, olha pela janela, “está cheio de recursos, é muito rico”. “E acho que se as pessoas forem criativas, se tiverem gosto no que fazem, se forem curiosas, podem conseguir criar o seu emprego de muitas formas. Porque estas coisas aprendem-se. Eu vou ter com quem sabe e eles que me expliquem.” Pausa. “É uma grande mágoa que estas pessoas têm, não poder passar este conhecimento. Porque sabem que vai morrer com elas.”

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