Tomás Correia come tudo e não deixa nada

Sejamos honestos e dispensemos os eufemismos. Isto é um monumental conflito de interesses que nos envergonha a todos.

Até 2015, Tomás Correia presidia à Associação Mutualista Montepio, única acionista do Banco Montepio (na altura, Caixa Económica Montepio Geral) e simultaneamente ao banco. Em 2015, o Banco de Portugal forçou a separação entre os dois. Tomás Correia ficou presidente apenas da mutualista, tendo José Félix Morgado assumido a presidência executiva do banco, de onde saiu em 2018, por discordar da possibilidade da Santa Casa da Misericórdia se tornar acionista do banco. Segundo o PÚBLICO, a 16 de março de 2018, dia em que Carlos Tavares substituiu Félix Morgado na presidência do banco, Tomás Correia convocou de surpresa uma assembleia geral para o próprio dia, onde aparece para representar o único acionista do banco, que é a associação mutualista. Nessa qualidade, usou o seu voto para aprovar uma resolução que põe o banco a pagar as multas em que ele próprio viesse a incorrer por gestão ilícita do dito banco entre 2008 e 2015. Isto numa altura em que sabia que o Banco de Portugal andava a farejar a sua gestão. A ver se não nos perdemos: Tomás Correia, presidente da associação mutualista, convoca uma reunião com poucas horas de antecedência na qual é um dos poucos a comparecer (uma coincidência “do diabo”, parafraseando Ricardo Salgado no inquérito à Operação Marquês) e na qual decide atribuir benesses a Tomás Correia, ex-presidente do banco da dita mutualista. O PÚBLICO disse na quarta-feira simpaticamente que isto “indicia um potencial conflito de interesses”. Sejamos honestos e dispensemos os eufemismos “indicia” e “potencial”. Isto é um monumental conflito de interesses que nos envergonha a todos.

Conflitos de interesses também existem em outros países. No artigo The Pay of Corporate Executives and Financial Professionals as Evidence of Rents in the Top 1 Percent Incomes, publicado no Journal of Economic Perspectives em 2013, Josh Bives e Laurence Mishel mostram que o rendimento dos CEOs não decorre de uma remuneração normal de mercado, em que estas pessoas ganhariam algo parecido com o valor que geram para as empresas que dirigem. Pelo contrário, as compensações chorudas das administrações têm origem no facto de quem as compõe ter imenso poder para decidir em causa própria. E parece claro que o problema é especialmente grave no sector financeiro. Os ganhos dos profissionais do sector financeiro e dos executivos de outros sectores explicam dois terços do aumento de rendimento dos 0,1% mais ricos dos EUA entre 1979 e 2005.

Mesmo se esta história não é uma especificidade nacional, o certo é que o síndroma do pequeno país piora as coisas por estes lados. Eu não queria repetir-me, sobretudo por más razões, mas já em junho do ano passado aqui citei o artigo Lições de um Colapso Financeiro, publicado na revista Economic Policy, que conta a história da bancarrota islandesa em 2008. Os dois grandes bancos públicos, Landsbanki e Bunadarbanki, foram vendidos no círculo de relações estreitas com os dois partidos no poder. Esta tem piada: os novos donos de cada banco compraram-no recorrendo a um empréstimo do outro banco. A promiscuidade entre os novos banqueiros e o poder político, combinada com a falta de preparação técnica dos reguladores – que viram o sector bancário tornar-se oito vezes maior entre 2004 e 2008 –, levou a uma situação explosiva em que os bancos operavam, basicamente, sem supervisão efetiva. Se está a sentir uma certa familiaridade com esta história, não está a alucinar. Em Portugal o sector financeiro não cresceu tanto, mas os gigantescos conflitos de interesse, o deslumbramento coletivo por uma modernização rápida da economia e o amiguismo do pequeno país estão todos cá.

Entretanto, ficámos a saber que vamos emprestar (sim, é o nosso dinheiro, meu e das minhas leitoras e leitores) mais de mil milhões ao fundo de resolução para injetar capital no Novo Banco. Segundo a Comissão Europeia, já em 2017 fomos o país europeu em que o apoio a instituições financeiras teve o maior impacto no défice (2,3% do PIB). Este novo empréstimo será supostamente pago pelo sector bancário daqui a 30 anos, o que levou o ministro das Finanças a afirmar na quarta-feira que isto não custa nada aos contribuintes. Só que não. A banca portuguesa é como o filme Groundhog Day, em que Bill Murray acorda todos os dias a 2 de fevereiro, mesmo depois de, desesperado por tanta repetição, ter tentado soluções drásticas como o suicídio. A história da gestão de Tomás Correia no Montepio tem todos os suspeitos do costume: Ricardo Salgado, Ongoing, José Guilherme. Uma das razões que levou o Banco de Portugal a multar Tomás Correia em 1,25 milhões foi um crédito ruinoso dado ao construtor José Guilherme, sem quaisquer contrapartidas, de 27 milhões. Deu e sobrou para a famosa liberalidade de 14 milhões com que este presenteou Ricardo Salgado. Em outubro, Tomás Correia disse à Lusa não ter “informação de que qualquer coisa, no quadro das relações com esse cliente, tenha corrido mal do ponto de vista do cumprimento”. Esqueceu-se do detalhe de José Guilherme não ter ainda pago a dívida. Fora isso, está tudo bem.

Alguém acredita que isto um dia vai acabar e que vamos mesmo reaver o dinheiro? Provavelmente, nem mesmo Mário Centeno.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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