Depois de Salvador Sobral

Sei que Amar pelos Dois não mudou nada na Eurovisão. Mas devia mudar algo em Portugal.

O Festival da Canção da RTP encontrou em 2017 um novo fôlego graças a um modelo de seleção de canções reformulado e assente na aposta inteligente de convidar um conjunto de compositores de canções da nova geração, bem escolhido, com provas dadas e com reputação nesta área, cujo trabalho já conhecido prometia ser uma garantia de qualidade. Tratando-se da representação internacional da RTP na Eurovisão, parece-me evidente que a partir do momento em que é tomada a decisão executiva de manter a nossa presença neste certame, passa a ser obrigação da empresa fazê-lo ao melhor nível, promovendo simultaneamente a indústria nacional do setor, cruzando competências e gerações. Assim aconteceu em 2017 e assim terá sido tentado nos anos seguintes, designadamente na edição de 2019, cuja final ocorreu no passado domingo.

Em 2017, no entanto, aconteceu algo, que, apesar de maravilhoso, intoxicou o processo com a pior toxina: a marca da intemporalidade – apareceu uma canção excecional, cantada por um intérprete raro. Colocou a fasquia dos certames seguintes numa altura quase impossível, o que devia obrigar a RTP a uma demanda empenhada que procurasse criar condições para proporcionar o surgimento de outras canções de qualidade fora do comum. É difícil, claro, mas é o preço que se paga por termos tido uma canção tão extraordinária como Amar Pelos Dois de Luísa Sobral, um intérprete de eleição como Salvador Sobral e a única vitória na Eurovisão obtida com essa canção, que pôs russos, paquistaneses, coreanos, japoneses, polacos, moldavos, islandeses e muitos outros a cantar em português no YouTube durante meses. Mas sendo nós um país de arroubos desequilibrados de criatividade como somos, no ano seguinte, hospedeiros da Eurovisão, Portugal passou de 1º para o último lugar, apesar de o sistema de apuramento nacional ter sido semelhante ao de 2017.

Não sendo eu especialista em música pop, não vou entrar em considerações estéticas sobre a tipologia das canções que Portugal escolheu para se fazer representar – senão diria que a canção vencedora de 2019 lembra-me o que se escuta nos souks de Marrocos; também não quero aqui refletir sobre a importância da nossa presença este ano em Israel, país que mantém o povo Palestiniano segregado no seu próprio território. A partir do momento em que ela está decidida, só temos que nos unir para que Portugal seja bem representado.

Quero apenas aqui sublinhar o que Salvador Sobral se fartou de dizer em várias línguas, mas que parece não ter sido entendido, nem no seu país – “o que importa é a canção”, repetiu ele sempre que podia. Nada mais interessa. Uma canção tem que ter alma, tem que ter vida própria, por isso pode perdurar, anos, décadas. É assim desde os madrigais renascentistas, passando por Schubert, Michel Legrand ou Chico Buarque. Os intérpretes são apenas os veículos da canção. Ela deve poder sobreviver ao seu primeiro intérprete, mesmo que seja o seu compositor. Sei que Amar pelos Dois não mudou nada na Eurovisão – no ano seguinte ganhou uma canção em tudo oposta à de Luísa Sobral.

Mas devia mudar algo em Portugal, pelo menos o reconhecimento de que a canção, per si, é um valor absoluto que devia ser perseguido pelos compositores, independentemente das correntes estéticas. Embrulhar uma canção numa performance e transformá-la num happening é arte, sim, mas é preciso que debaixo de tudo esteja uma canção. A RTP deverá ter em conta a importância de cruzar as competências de intérpretes e autores indiscutivelmente afirmados em Portugal com os mais jovens se quiser fazer-se representar ao mais alto nível, a não ser que o Festival da Canção seja, afinal, apenas um certame para descobrir novos talentos. 

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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