A lei do mais forte

Pode um juiz, nos dias que correm, ter intervenções deste nível? Pode um magistrado, que deve ser um garante da legalidade e da moralidade, assumir posições inaceitáveis na sociedade contemporânea ante a violência doméstica?

O tema que entendi abordar hoje está na ordem do dia. Seja porque os casos se vão multiplicando, seja porque se tornou mediático um caso de misoginia tão grave que a ninguém pode deixar indiferente. 

Falo do caso, ou melhor casos, do juiz Neto de Moura. Alguém com a posição que este senhor ocupa não pode, e não deve, dar respaldo a actos que são considerados hediondos pelos factos e abjectos pelas intenções – o preconceito de género.

Mas no meio de tantos casos mediáticos em que as terminologias se parecem confundir, da igualdade de género à ideologia de género, torna-se necessário algum esclarecimento. O preconceito de género pode ser entendido também como sexismo (mais frequentemente machismo) e refere-se a atitudes que privilegiam um determinado sexo ou orientação sexual, em detrimento de outro. São usualmente práticas abjectas que desprezam, desqualificam, desautorizam e violentam as mulheres, como se fossem seres de menor prestígio social, e podem ser perpetradas tanto por homens como pelas próprias mulheres. É algo que se aculturou indevida e impunemente como se fosse algo natural.

O sexismo extremo, que pode afetar qualquer género mas está particularmente documentado como afetando em grande número as mulheres, fomenta e promove o assédio sexual, o assédio moral, a violação, a violência doméstica e outras formas de violência.

O assunto, na ordem do dia, ganhou honras de parangonas mediática não somente pelos casos de violência em si mesmos, mas pelos acórdãos proferidos pelo juiz Neto de Moura, que a opinião publicada, e por consequência a opinião pública, entenderam serem indecorosas e indecentes. Maior relevância ganhou porque o mesmo juiz entendeu processar todas as figuras públicas que o criticaram, da política ao humor. 

Mas terá o juiz alguma razão de queixa? Poderá ser dado o benefício da dúvida? É injusta a crítica pública?

Não tenho dúvida nenhuma que, lidos os excertos dos acórdãos que assinou, estamos perante um caso extremo de preconceito de género. Julgando casos de violência doméstica de extrema gravidade, o juiz teceu considerandos sobre as mulheres agredidas fundadas num machismo retrógrado e num sexismo exacerbado que não esperaríamos ver num magistrado que, para justificar os seus argumentos, recorreu não aos cânones da lei, mas à Bíblia. Não ocorreria hoje nem a um clérigo recorrer a passagens bíblicas sobre a mulher adúltera para justificar a lapidação pública.

No acórdão em destaque pode ler-se que “o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte. Ainda não foi há muito tempo que a lei penal (Código Penal de 1886, artigo 372.º) punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse acto a matasse”. Argumentos para “acentuar que o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e, por isso, vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher”.

Em causa estava um caso de violência de dois homens que sequestraram uma mulher, e enquanto o antigo amante agarrava a mulher, o marido, “empunhando um pau comprido com a ponta arredondada, onde se encontravam colocados pregos”, lhe bateu, primeiro, na cabeça e, depois, em diversas partes do corpo, provocando-lhe lesões um pouco por todo o organismo. Ambos foram condenados a penas de prisão suspensas.

Pode um juiz, nos dias que correm, ter intervenções deste nível? Pode um magistrado, que deve ser um garante da legalidade e da moralidade, assumir posições inaceitáveis na sociedade contemporânea ante a violência doméstica?

Não, não pode. Não podemos aceitar que as opiniões pessoais e particulares possam enviesar as tomadas de decisão dos representantes das Leis. É absurdo, indescritível e inaceitável.

O juiz em questão anunciou que vai processar todos quantos publicamente o criticaram. Pode ser que me calhe também a mim, ainda que não preencha os requisitos mediáticos necessários para o “talvez almejado" pseudo processo de vitimização da pessoa em questão. 

Pouco provável. Porém, a acontecer, tomá-lo-ia como um elogio.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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