Ministério Público ganha via verde para conhecer amnistias fiscais

Para obterem a ficha de regularização tributária de um arguido, os procuradores já não têm de recorrer ao Banco de Portugal, enfrentar a recusa do regulador e chamar o juiz a intervir. Fisco é o novo interlocutor e a lei prevê a quebra do sigilo.

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Procuradores do caso EDP demoraram quase dois meses a receber documentos do RERT de Pinho Miguel Manso

As fichas dos cidadãos que beneficiaram dos controversos Regimes Excepcionais de Regularização Tributária (RERT), até aqui guardadas no Banco de Portugal, já estão nos arquivos da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT). Uma mudança de mãos que permitirá ao Ministério Público obter essa informação de forma mais ágil e rápida.

Até agora, quando um procurador queria trazer ao inquérito os documentos de um arguido que regularizou património escondido no estrangeiro num dos três RERT lançados pelos Governos de José Sócrates e Pedro Passos Coelho, tinha de os pedir ao banco central. Com um resultado antecipado: o supervisor começava por negar, invocando a confidencialidade dos dados bancários; perante a recusa, obrigava o procurador a provocar o chamado “incidente jurisdicional” de quebra do segredo; e só acabava por os entregar à segunda tentativa, quando o pedido fosse validado pelo juiz de instrução.

Agora, como a administração fiscal se tornou a fiel depositária das declarações, basta aos procuradores titulares de um inquérito emitirem um despacho a pedir os dados ao novo interlocutor.

A mudança é muito recente e tem passado despercebida — porque só desde o início de Fevereiro é que a AT ficou com as fichas dos RERT de 2005, 2010 e 2012 —, mas o fundamento tem quase dois anos. A explicação está numa alteração cirúrgica feita em 2017 à Lei Geral Tributária (LGT) que ganha agora uma nova centralidade na questão dos RERT.

Se, dantes, era preciso que o juiz de um processo emitisse um despacho fundamentado para os procuradores acederem a dados protegidos por sigilo fiscal, hoje, à luz da LGT, o dever de sigilo da AT cessa no caso de “colaboração com a justiça nos termos do Código de Processo Civil e mediante despacho de uma autoridade judiciária, no âmbito do Código de Processo Penal”. E como na fase do inquérito a autoridade judiciária é o Ministério Público, isso significa que os procuradores, bastando emitir um despacho, podem fazer os pedidos directamente à autoridade tributária.

Como entretanto — fruto de um norma do Orçamento do Estado deste ano proposta pelo BE dando eco a um desafio lançado justamente em 2017 pelo ex-secretário de Estado Fernando Rocha Andrade — as fichas dos RERT passaram para a esfera da autoridade tributária, essa regra também é válida para estes dados.

Embora o Ministério Público já tivesse o entendimento de que bastaria emitir despacho para quebrar o segredo de dados bancários, os procuradores do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) têm acedido obter os dados fazendo passar os pedidos pelo juiz de instrução criminal, para não criar mais pedras na engrenagem e salvaguardar o andamento do processo. Isso tem duplicado os pedidos ao Banco de Portugal: primeiro, os procurado­­­res pedem directamente, fazendo valer a leitura de que a lei lhes dá essa faculdade; depois, perante a recusa do Banco de Portugal, fazem-no por intermédio do juiz.

O caso EDP

Foi o que aconteceu, por exemplo, no chamado caso “EDP/CMEC”, onde o DCIAP investiga a prática de crimes de corrupção, prevaricação, participação económica em negócio e branqueamento de capitais. Quando a equipa de procuradores Carlos Casimiro e Hugo Neto quis juntar aos autos os comprovativos de que o ex-ministro Manuel Pinho tinha regularizado património escondido no estrangeiro, só os obteve à segunda tentativa. Ao todo, foram precisos quase dois meses para que os documentos fossem parar aos autos.

Os apensos consultados pelo PÚBLICO no DCIAP permitem ver os passos percorridos pelos investigadores ainda há poucos meses. Para confirmar se Manuel Pinho e a mulher, Alexandra da Fonseca Pinho, aderiram aos três RERT (I, II e III), a equipa de procuradores decidiu enviar uma carta ao Banco de Portugal a solicitar que os documentos fossem enviados no prazo de dez dias.

Para justificar a diligência nos autos, os magistrados argumentavam que aceder à declaração e aos comprovativos se revelava decisivo para a análise dos factos que estavam a ser investigados no inquérito, entre eles a empresa offshore Tartaruga Foundation de que Pinho e a mulher eram titulares em 2010 no Panamá, e sobre a avença mensal de cerca de 15 mil euros que ao longo de vários anos fora alegadamente paga a Pinho pelo “​saco-azul”​ do GES. E não só dizia que era importante conhecer essa documentação dos RERT para a investigação, como o era também para a “própria defesa” de Pinho (arguido) e da mulher (suspeita), “designadamente para poder excluir quaisquer eventuais ilícitos fiscais em que os referenciados tenham sido intervenientes”.

A carta segue para o Banco de Portugal a 25 de Setembro de 2018. E mesmo que o procurador Carlos Casimiro já tivesse conhecimento de que a resposta do supervisor bancário seria previsivelmente negativa, decidiu avançar com o ofício aos directores do Departamento de Emissão e Tesouraria e mandar entregar o ofício em mãos no complexo do BdP no Carregado, onde está o “cofre-forte” do regulador.

Como já contavam com a recusa, os procuradores deixam claro o que farão de seguida: “Em caso de resposta negativa, mais se solicita que seja informado sobre a viabilidade de serem enviados os referidos documentos se o pedido for efectuado pelo Juiz de Instrução Criminal junto do Tribunal Central de Instrução Criminal.” E assim foi.

A resposta chega a 9 de Outubro, já tinham passado 15 dias (dez dias úteis). Quem responde é o advogado coordenador do contencioso, Luís Bigotte Chorão. Nega quebrar o sigilo, alegando que, pelo regime geral das instituições de crédito e pelas normas dos RERT, o regulador está “legalmente vinculado a deduzir a correspondente escusa legítima, de modo a que seja promovido, caso assim seja entendido, o incidente jurisdicional de quebra do segredo”, isto é, a intervenção do juiz. E chegando a pedir aos procuradores do DCIAP “compreensão para os constrangimentos legais existentes”, dizia ficar a aguardar a “notificação da decisão judicial de quebra do segredo invocado” para aí, sim, os enviar.

Só nessa circunstância acabou por os fornecer a informação que havia sido solicitada em Setembro. Feitas as contas, apenas a 21 de Novembro é que os documentos puderam ser apensados aos autos. E foi nessa altura, com os dados nos autos, que o DCIAP pôde avançar com pedidos de informação bancária ao Novo Banco e à sucursal do Deutsche Bank em Portugal.

Sigilo e confiança

As questões acerca da salvaguarda da confidencialidade dos dados dos RERT sempre foram polémicas. Quando os Governos de Sócrates e Passos aprovaram os regimes, deram protecção especial aos amnistiados, ao preverem expressamente que as declarações não poderiam ser usadas “por qualquer modo” como “indício ou elemento relevante” para qualquer procedimento tributário, penal ou de contra-ordenações.

Quem fugiu ao fisco português colocando património ilicitamente em contas bancárias no estrangeiro, pôde ao abrigo dos três programas “excepcionais” pagar uma convidativa taxa de IRS (de apenas 5% nos dois primeiros RERT e de 7,5% no último) e ficar a salvo de um acusação criminal por não ter declarado património ao fisco. Um escudo que, por exemplo, permitiu à maior parte dos clientes portugueses apanhados no escândalo Swissleaks estarem blindados quando o fisco os foi investigar.

Um dos pressupostos que até hoje continua gerar controvérsia foi o facto de o legislador ter deixado as declarações de fora da esfera da autoridade tributária, confinando-as ao Banco de Portugal e aos bancos aos quais os amnistiados recorreram para intermediar a regularização dos capitais.

Agora que os dados passaram para o fisco, alguns advogados insurgiram-se contra argumentando que o Estado está agora a violar o princípio da confiança ao inverter o que então assumiu, porque, dizem, o legislador então garantiu a confidencialidade dos dados e, perante isso, os contribuintes que fugiram ao fisco só aderiram aos RERT I, II e III pressupondo que a divulgação a terceiros desses documentos dependeria do seu consentimento (algo que está previsto em portaria, mas não na lei).

Os RERT deram a garantia de que as declarações não podem ser usadas como um meio de prova dos factos contra os seus autores. Os documentos são, no entanto, importantes para os inspectores do fisco e os procuradores fundamentarem diligências no âmbito de outros processos onde as mesmas pessoas estejam a ser investigadas. Por exemplo, se um inspector detectar que um contribuinte tem dois milhões de euros escondidos no estrangeiro, e se essa pessoa tiver aderido a um RERT para regularizar três milhões, pode alegar que já regularizou esses valores, mas o fisco poderia não conseguir confirmar, sem as declarações e a documentação completa, que a operação agora investigada corresponde à que foi regularizada, isto é, se os dois milhões estão “dentro” dos três milhões regularizados.

Ainda antes de se colocar a hipótese pública de os dados dos RERT passarem do BdP para a autoridade tributária, o actual Governo fez a tal alteração à Lei Geral Tributária que agora tem um resultado prático na questão do acesso aos documentos das amnistias.

Apesar de cirúrgica e discreta, a mudança de 2017 veio acompanhada de uma outra norma: ficou previsto que as autoridades judiciárias podem aceder directamente às bases de dados da administração fiscal. Ainda não se sabe qual é o tipo de dados a que os magistrados poderão aceder, nem como é que o acesso será regulado e controlado, porque para isso tem ainda de ser celebrado um protocolo entre o fisco, a PGR e o Conselho Superior da Magistratura.

Até lá, os procuradores “solicitam directamente” os dados à autoridade tributária, confirmou ao PÚBLICO a Procuradoria-Geral da República.

À Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), muito crítica da alteração, a nova redacção da lei causou “preocupação séria” por não impor o controlo prévio do juiz, chegando mesmo a considerar que há uma “restrição inconstitucional do direito fundamental à protecção dos dados pessoais” pelo facto de o “acesso directo a qualquer base de dados da AT e a quaisquer dados pessoais” não exigir o despacho fundamentado do juiz.

Certo é que a iniciativa acabou por vingar. Neste momento, diz a PGR, o protocolo ainda está “em fase de elaboração articulada entre a Autoridade Tributária e a Procuradoria-Geral da República”. O documento terá ainda de ser submetido a parecer da CNPD.

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