O cinema encontra o seu grand slam

Um filme sobre um tenista em particular, sobre o seu jogo e sobre a sua personalidade em jogo. É a mais límpida visão do desporto moderno, do desporto feito para as câmaras, do desporto-espectáculo. Por mais que se queixe, John McEnroe está mesmo na rodagem de um filme.

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Eis algo que é, feitas as contas, relativamente raro: um grande filme sobre desporto. John McEnroe - o Domínio da Perfeição é, como o título indica, um filme sobre um tenista em particular, sobre o seu jogo e sobre a sua personalidade em jogo, sobre um momento bastante dramático da sua carreira desportiva (a derrota na final de Roland Garros em 1984, contra Ivan Lendl, que o impediu de conquistar o grand slam no ano mais dominador da sua carreira - "foi o seu melhor ano e o seu pior ano", como diz o realizador, Julien Faraut).

Ao mesmo tempo, e sem perder este centro, é muito mais do que apenas sobre McEnroe: é sobre o ténis; é sobre a transformação do ténis, nesses anos 80, em grande espectáculo televisivo e massificado; é sobre o diálogo entre o que se passa no terreno de jogo e o que se passa fora dele, como um "campo" e um "fora de campo" (portanto, sobre cinema); é sobre a maneira de filmar o ténis, sobre a maneira de usar imagens de arquivo, sobre a raiz científica que conduziu à invenção da imagem cinematográfica (e portanto, mais três vezes, ainda sobre cinema).

Tem uma epígrafe colhida a Godard - "o cinema mente, o desporto não" - e evoca frequentemente os escritos sobre ténis de Serge Daney. Nunca vimos, e nunca ninguém viu, algumas das mais fortes referências da cinefilia "moderna" convocadas para um filme sobre desporto. Também por isso, John McEnroe é um objecto especialíssimo, sempre em "circuito", sempre a tecer as mais variadas articulações temáticas: aprende-se sobre o jogo, reflecte-se sobre o cinema, e em simultâneo. Como nos diz Julien Faraut em conversa telefónica, "na maior parte das vezes quando se fala de cinema e de desporto, fala-se por comparação, agora um, agora outro, e o que eu tentei foi falar das duas coisas ao mesmo tempo".

Há um outro nome que é preciso referir, e que está na base da maior parte do material usado. É um cineasta, mas praticamente desconhecido no meio do cinema: Gil de Kermadec. Kermadec, funcionário da Federação Francesa de Ténis e ex-jogador, dirigiu durante anos a secção educativa da Federação. O seu trabalho era filmar os grandes jogadores mundiais em acção, para que os seus movimentos pudessem ser estudados pelos aprendizes de tenistas. McEnroe nasceu do contacto de Faraut (ele próprio arquivista, responsável pela cinemateca do Instituto Francês do Desporto) com as infindáveis bobinas filmadas por Kermadec ao longo de décadas, e que nunca tinham sido montadas.

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Depois das primeiras exibições do filme, o realizador, Julien Faraut, recebeu um email do agente de John McEnroe: “he liked it” (”ele gostou”)
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"O meu primeiro grande choque", conta-nos Faraut, "foi ver o ténis filmado em película de 16mm". Especialmente aquele ténis, o ténis dos anos 80, que conhecemos primordialmente pelas imagens da televisão e como espectáculo televisivo. Ver esta "modernidade" embebida do arcaísmo dos 16mm, com todo o grão e textura muito específicos, em enquadramentos que não davam a totalidade do jogo mas se focavam minutos a fio no mesmo tenista (porque Kermadec não queria filmar "o jogo", queria filmar o trabalho dos tenistas), criou em Faraut uma sensação de pasmo e de "ambiguidade": "o que é isto?, perguntei-me, é realidade, é encenação, é ficção? Foi esta dobra que me impeliu a trabalhar aquele arquivo, e fixei-me em McEnroe por duas razões: primeiro porque havia uma colecção enorme de imagens com ele, depois porque McEnroe encarnava perfeitamente a dobra 'realidade/ficção', pela sua persona pública e pela sua maneira de estar nos courts, que nunca deixava perceber claramente se estava a 'representar' ou a ser genuíno".

Há várias razões para que a epígrafe do filme seja a frase de JLG, "o cinema mente, o desporto", que vem duma entrevista que o cineasta deu ao jornal L'Équipe em 2001 e que Faraut não esqueceu. "Percebi instintivamente o que ele queria dizer, e é curioso que quando JLG fala de cinema ou de outros assuntos é frequentemente algo abstracto e nunca sabemos se o devemos entender num segundo grau, mas ele a falar de desporto é límpido e preciso". E essa constatação de JLG em 2001 é a mesma a que Kermadec tinha chegado anos anos antes, quando (e isto é evocado no filme) percebeu que tinha que mudar a sua maneira de filmar os tenistas. Primeiro, Kermadec trabalhava como se estivesse em estúdio, pedia aos jogadores que reproduzissem, para a câmara, os movimentos que faziam durante o jogo. "Depois, Kermadec percebeu que assim tudo aquilo ficava forçado, falso, que para chegar à verdade do desporto tinha que filmar os jogadores em competição" - intui, portanto, que "o cinema mente, o desporto não". E "é extraordinário" que Kermadec, diz Faraut, tenha tido esta intuição, tenha chegado "à sua nouvelle vague", tratando-se de alguém que fazia trabalho de cineasta mas estava aparentemente "fora do cinema, fora da indústria, fora da arte, fora da História". Mas esta intuição prova-o, "era alguém que pensava como um verdadeiro cineasta".

A tal ponto que estava consciente do "cemitério índio" (expressão do filme) em cima do qual trabalhava. É um dos momentos mais extraordinários do filme, a revelação de que os courts de Roland Garros estão construídos no lugar onde situava o estúdio de Étienne-Jules Marey, um dos principais precursores da imagem cinematográfica, e que nesse estúdio inventou uma forma de fotografar e decompor os movimentos de seres humanos e de animais - a curiosidade científica como raiz do cinema, a mesma curiosidade científica ("primitiva, no melhor sentido do termo", diz Faraut) que movia Kermadec - e isso está em pleno em McEnroe, o fascínio pelo ralenti, pela percepção do movimento detalhado e decomposto duma forma inatingível ao olho nu: é um "estudo sobre o movimento" escorado noutros estudos sobre o movimento.

E sobre o tempo. Que entre Daney, abundantemente citado no filme, autor de muitas páginas sobre ténis no Libération, depois compiladas num volume chamado L'Amateur de Tennis. Faraut releu tudo que Daney escreveu sobre ténis, e julga ter encontrado o nó do fascínio do crítico de cinema por aquele desporto ("para além da questão pessoal, do facto de em miúdo a mãe o levar frequentemente a ver jogos de ténis"): o facto de, ao contrário dos outros desportos, o ténis não ter um tempo preciso ("não é como o futebol ou o básquete"), e os jogadores precisarem de "inventar o tempo necessário para ganhar o jogo", de "controlar a duração", de "dominar o tempo" - e nisso, diz Faraut tentando entender Daney, a analogia com o cinema é gritante, "é como o trabalho de um cineasta que tem que inventar uma durée, de inventar o tempo necessário para que a história que tem para contar se 'ganhe'".

Outro momento fabuloso do filme é aquele em que a voz off discute os tipos de documentários ("os que acreditam que a câmara não muda nada da realidade, e os que sabem que a presença da câmara altera a realidade filmada") fazendo coincidir essa classificação dicotómica com um momento em que McEnroe fita directamente - em perfeito regard caméra - uma das câmaras que o filmam. Toda a fronteira estanque entre o terreno do jogo e as imediações (o "campo" e o "fora de campo") se dilui naquele momento. As acções do fora de campo (espectadores, operadores de câmara e de som) invadem o terreno, actuam sobre ele: "McEnroe reage várias vezes a isso, até tentou proibir a presença de fotografos e cameramen, e há um momento em que se queixa de que isto é um jogo, não é a rodagem de um filme". Mas aí é que está: é a mais limpida visão do desporto moderno, do desporto feito para as câmaras, do desporto-espectáculo. Por mais que se queixe, McEnroe está mesmo na rodagem de um filme.

McEnroe, com quem Faraut nunca falou. "Todos os contactos foram feitos com o agente, que é o mesmo desde há trinta e tal anos, e foi muito estranho, porque está habituado a ser contactado por grandes empresas, para fins publicitários, não pela equipa de um pequeno filme francês". Depois das primeiras exibições do filme, Faraut recebeu um email do agente: "he liked it" ("ele gostou"). "Só isto", o realizador nem soube bem o que pensar. Mas depois, indirectamente, teve uma reacção mais eloquente: soube que, quando o filme foi mostrado em Nova Iorque, o agente requisitou diversos bilhetes para a família e para os amigos de McEnroe. "Aí, percebi: ele gostou mesmo".

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