Pluviosidade, cafés e cliques para resolver um crime

Os pontos fortes de Rainswept são os temas que aborda e a forma como são alicerces para a construção de personalidades que marcam. Infelizmente, marca também o marasmo.

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A chuva raramente dá descanso a quem está em Pineview. Local onde o passar dos dias o fecha hermeticamente do resto do mundo, é também onde está a cena do crime que desamarra o argumento de Rainswept. O jogador veste a pele do detective Michael Stone e cinco horas depois é fácil ter algo a dizer sobre o título da Frostwood Interactive – e nem tudo são elogios.

Estamos em 1996 e dois jovens morreram. Chris e Diane eram um casal com grandes ambições, mas à lei da bala ficaram estendidos no chão da sua casa. Juntamente com Amy Blunt, uma polícia local que chegou à profissão há pouco tempo, Stone terá de começar a descascar os depoimentos dos locais, de quem já por aqui estava antes da chegada do detective, vindo de um passado também ele pouco arejado.

Aproxima-se o festival local que se realiza anualmente em Outubro. Haverá comida e diversões. Antes, há a pressão da polícia local para resolver o caso. Esta pressa ajuda a alimentar alguns clichés narrativos: a velocidade com que a polícia local pensa ter resolvido o caso é o trampolim para Michael ser o herói a longo prazo, ou seja, para ser o raciocínio que pensa haver mais do que está visível à superfície. Claro que há e claro que é o protagonista a deslindar a verdade que de outra forma provavelmente teria ficado no éter.

A obra faz ainda questão de enveredar pelo jogo das acusações falsas que levam os locais a perder a confiança em Michael Stone, apenas para fortalecer a relação com Amy, a única que se demora a acreditar nele, e para que a coroação final seja ainda pomposa. Esta espiral serve também o protagonista ir mostrando ao jogador a perda do amor da sua vida, o quão pesada continua a sua consciência e como isso pode deturpar o olhar para o presente.

Pode-se então pensar que o argumento de Rainswept é mau. Mas, mesmo com uma conclusão que fica aquém e que parece algo apressada, acaba por ser um dos seus pontos mais fortes.

Alimentando a curiosidade de quem joga de saber quem é que matou as duas pessoas, a obra tem uma abordagem sensível sobre temas dolorosos, mostrando o lado mais esperançoso de vidas que foram sendo golpeadas por acontecimentos traumatizantes e fracturantes.

A forma como há uma personagem que foi abusada sexualmente, a violência dentro de portas, a forma como as relações podem ser obsessivas, a perda experienciada de várias maneiras, o suicídio e como esse pensamento se vai maturando e aliciando; enfim, Rainswept consegue não só versar sobre tudo isto, como fazê-lo sem cair em tiradas ofensivas ou sem tacto. Além disso, é uma obra que não se esquece de ir enriquecendo as personagens, o que na prática faz com que o jogador se interesse quando estas revelações acontecem.

Isto faz-se com uma muleta narrativa básica, mas eficaz: por diversas vezes ao longo destas cinco horas deixamos de controlar Michael e vestimos a pele de outras personagens enquanto vivemos o seu passado na primeira pessoa. Logo à cabeça está a explicação de como Chris e Diane se conhecerem e de como a relação foi amadurecendo. Mas há também, por exemplo e sem grande surpresa, trechos que nos permitem compreender sem margem para equívocos o passado da personagem principal.

Isto tudo enquanto a investigação vai avançado. Passamos pela morgue para ficarmos a saber os resultados das autópsias, percebemos que houve a sabotagem dos planos de Chris para inaugurar um hotel em Pineview. A obra faz questão de nos dar desenvolvimentos mistos para que nós, tal como o detective e os locais, comecemos a ter as nossas próprias teorias. Porém, parece que falta um acto na hora de atar os nós. Não é que se trate de um final previsível a léguas, mas sim de algo menos consequente e profundo do que o percurso até lá chegar.

Os maiores problemas de Rainswept estão associados à jogabilidade. Obra sem complicações, vamos apenas escolhendo de várias opções de diálogo que se abre quando começamos a falar com as personagens. Há um mapa e uma lista com os objectivos seguintes. A progressão é medida dia-a-dia. Depois de os objectivos estarem concluídos, Michael regressa ao quarto de hotel, vive sonhos estranhos e jogáveis, acorda na manhã para geralmente se encontrar com a sua equipa no café local. Muito café, muita chuva, muito quarto de hotel, algumas recordações de Twin Peaks.

Quem dá prioridade a uma obra testadora de habilidades nem sequer deve considerar Rainswept, proposta claramente desenvolvida para os fãs que experimentam algo pelos apetrechos narrativos. Não sendo desafiante, a jogabilidade usada para as escolhas é também inofensiva. Pior é a forma como nos deslocamos pelo mapa. Pressionar a tecla “M” mostra uma planta de Pineview, e quem tem o teclado e o rato à frente tem de perceber a ligação entre as diferentes ruas e fazer o caminho varrendo o cenário na horizontal – importa mencionar que Rainswept é uma obra apresentada a duas dimensões.

Não é que seja um processo exigente, mas fica a sensação de que é algo que serve para aumentar artificialmente a longevidade da obra. Ir do hotel para o hospital ou para a oficina onde o carro do detective está a ser consertado desde os minutos iniciais é um exercício de ler as ruas nos mapas e de perceber que a Rua X leva à Rua Y. Há placas que ajudam, mas não servem para disfarçar o marasmo que se instala, até porque as personagens com quem podemos interagir pelo caminho raramente justificam a viagem.

Isto vai minando a obra com o acumular das horas. Se o resto do jogo fosse dotado de uma jogabilidade memorável, seria um detalhe, mas como o resto é escolher linhas de diálogo e passar em revista cenários à procura de itens para ver ou para breves interacções como encontrar uma chave escondida ou colocar combustível num barco (o que faz lembrar ligeiramente uma aventura gráfica, mas sem puzzles), é derradeiramente mais uma camada que não diversifica os processos. Ajudar um músico a terminar os versos das suas canções ou ser praticamente insultado por um avô que detesta a palavra “avô” não são justificações suficientes para calcorrear as mesmas ruas incontáveis vezes.

De origens modestas tecnicamente, Rainswept consegue algumas vistas inspiradas, mais graças à direcção artística do que propriamente à fidelidade gráfica. Sente-se a atmosfera graças a cenas não só pautadas pela pluviosidade, mas também quando somos levados a jogar sonhos ou aos interiores de algumas habitações. Compreende-se o esforço para variar os cenários, ainda que o processo seja sabotado parcialmente pelas cenas em que andamos pelo mapa.

Sobre o departamento gráfico fica também a nota que é fácil compreender a intenção da modelagem das personagens e a forma como é sobreposta nos cenários. Todavia, como as animações não são fluidas, ocasionalmente e inadvertidamente parece que estamos a jogar um episódio não oficial de South Park. 

A banda sonora assinada por Micamic sabe estar, ou seja, conhece o tom para a maioria das cenas, mas fica aquém na variedade que chega aos tímpanos. São temas que só não emulsionam mais a emoção porque a vocalização é inexistente, pelo que as sensações dos jogadores nascem do que vão lendo no ecrã. Isto faz com que os temas sejam cruciais para lhes dar uma nova dimensão mais profunda. 

O que fica de Rainswept na memória é a escrita usada para abordar, mexer e remexer em temas sérios com a sapiência necessária para despertar o pensamento e a sensibilização. Falha em vários processos da jogabilidade e tem um departamento técnico de execução variada. Quando chegamos à pessoa que matou, chegamos ao cinzento, mas antes ficamos a saber que se uma bala mata, o que se passa dentro de quatro paredes pode ir matando.

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