Miguel Schreck: "Temos uma cultura riquíssima, mas sinto que há coisas a desaparecer"

Na antiga prisão de Miranda do Douro, a associação Lérias "trabalha e luta todos os dias pela cultura". A toque de gaita, caixa e bombo.

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Miguel Schreck no pátio da sua prisão Teresa Pacheco Miranda

Gaita, caixa e bombo. O nome tem que ser dito com energia e ritmo. Como a Lérias - Associação Cultural com sede na aldeia de Palaçoulo fundada em 2008 e que em 2016 recebeu o edifício da antiga prisão de Miranda do Douro para transformar numa incubadora cultural e artística. Miguel Schreck, que um dia decidiu subir o rio Douro, é hoje presidente da Lérias, uma equipa de artistas que "trabalha e luta todos os dias pela cultura".

O carro de Miguel é uma espécie de centro cultural ambulante. Entre mil adereços ainda cabemos nós e Guincho, o cão com um nome mirandês. "Significa finório", explica Miguel Schreck enquanto abre o portão da prisão. À direita estão os instrumentos espalhados pela sala de ensaios e aulas, à esquerda a sala das Las Çarandas, e a seguir o escritório da Lérias onde costumava ser a sala de convívio das mulheres (com um pátio exíguo). "Era uma cadeia mista para pequenos casos de contrabando e rixas familiares", apresenta o presidente da Associação com tantos braços como o rio. Há duas celas femininas, seis masculinas — congeladas no tempo: lavatório, persianas que são grades, mesa de dobrar presa à parede, portinhola do penico, cama de ferro, colchão esburacado de palha e a bandeirola de ferro com que os presos chamavam o carcereiro — e um corredor onde foram colados 120 cartazes das actividades de dez anos da Lérias. "Na altura do regime, houve uma comitiva de Lisboa que veio a Miranda. E houve um tocador, um grande gaiteiro aqui da terra, que resolveu assinalar o momento, tocou o hino nacional na gaita de fole e foi preso. Consideravam que tocar o hino num instrumento como a gaita era uma ofensa à pátria."

A história da Lérias também já é a história de Miguel, artista plástico e actor que em 2011 resolveu fazer uma viagem de três meses pelo Douro, "desde a foz à nascente". Parou em Miranda, onde ficou um dos três meses dessa odisseia. Encontrou um grande movimento associativista e pessoas que partilhavam o interesse pelo meio rural. "Desde miúdo que sentia uma atracção pelo meio rural. Decidi que era o sítio onde eu queria viver. Há sítios que andam a inventar coisas para serem um chamariz cultural. E em Miranda do Douro está tudo inventado. Isto é um diamante superlapidado. Isto tem uma cultura riquíssima, a língua, os pauliteiros, a gastronomia, o vestuário, a música, os instrumentos com um timbre único. Tem é um bocadinho de pó por cima."

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Miguel e o cão Guincho Teresa Pacheco Miranda

A missão da Lérias é mesmo essa. "Tirar o pó à cultura da região." Trabalhar "à volta" dessa cultura. Dinamizar uma escola de musica tradicional que ensina pelo método antigo (os músicos da região sempre aprenderam "de ouvido, de olhar e sem a mínima noção de pauta; aprendiam sozinhos, a ir para as festas e olhar para o caixeiro e para o gaiteiro"), fazer mexer um grupo de teatro (o T.R.E.T.A.S. — Teatro Rural Experimental Terreiros Auditórios e Salões, criado juntamente com a Rita Melo e o Pedro Almeida, trabalha o imaginário rural e textos de autores transmontanos), assegurar o futuro de instrumentos tradicionais em vias de extinção (a gaita de fole está segura, a fraita tamborileira ou flauta pastoril para lá caminha) e promover todas as formas de cultura tradicional através das aldeias e vilas vizinhas (seja no formato de poesia pendurada ou no de uma escola de música itinerante). "Neste território, e apesar de as estradas serem boas, não há transportes públicos e as aldeias estão separadas por muitos quilómetros", justifica Miguel, apontando alunos desde os quatro anos com expressão musical à turma de Matela com alunos de sessenta e muitos "com muita energia e cheios de vontade de tocar".

"O principal intuito foi sempre o de promover e de assegurar esta cultura tradicional riquíssima", sublinha Miguel, que conhece a Lérias mal subiu o Douro. "Conheci e aproximei-me. Comecei como aluno de gaita de fole." Em 2016, Artur Nunes, presidente da Câmara de Miranda do Douro, desafiou a Lérias a tomar conta da prisão. "Queremos que se torne um espaço público e aberto. Mas para isso necessita de apoios financeiros", lembra o presidente da Lérias, que tem um incentivo municipal de 1200 euros anuais. "Uma vez parti uma costela e tive que fazer quase 50 quilómetros até Mogadouro. Aí senti mesmo as dificuldades. Há uma falta de investimento muito grande num país que tem uma cultura riquíssima. Aqui em Miranda a coisa é igual. Há uma noção de que Miranda do Douro é um caso único de cultura em estado puro. Mas o apoio é insuficiente."

Como a cultura tradicional, também a Lérias "vai sobrevivendo". "Somos todos voluntários. E sinto que há coisas a desaparecer. Os artesãos e as técnicas. Isto morre com as pessoas. É um cliché, mas é verdade. E há casos de sucesso. O burel, a gaita de fole. Neste momento há gaiteiros e está assegurado o futuro. Já há ensino em algumas artes, mas é uma luta iniciada por nós. É muito frágil. Há coisas que estão em risco de se perder. É um discurso tristíssimo, mas é verdade." Não são Lérias.

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Obra "L gueiteiro eilectrico", de Pedro Almeida, para o projecto Voltagem EDP Teresa Pacheco Miranda

Esta malta está parada
Só por não haver quem cante
Agora que cheguei eu
Siga a malta p'ra diante.

Siga a malta, siga a malta
Siga a malta, trema a terra
Venha de lá quem vier
Esta malta não arreda.
Ó que ranchinho de moças
Ó que bela mocidade
Criadinhas numa vila
Parecem duma cidade.
Declamado:
Ronda ronda i torna a rundar
Apuis de la ronda bamos merendar.

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