Leva-se um "concurso da NASA" ao lume e deixa-se o chef Kiko cozinhar lentamente

"É uma iniciativa credível, com organizações credíveis", diz Kiko Martins à Fugas, explicando porque ligou a iniciativa à NASA. O cozinheiro ganhou de facto um concurso gastronómico "marciano" que, não sendo promovido directamente pela agência espacial norte-americana, foi uma iniciativa de um centro espanhol afiliado.

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Kiko Martins no Program da Cristina (detalhe) DR/instragram.com/chefkikomartins
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Kiko Martins Enric Vives-Rubio

"Ontem ganhei o primeiro concurso mundial de cozinha espacial promovido pela NASA", escrevia Francisco Martins, celebrizado como chef Kiko, no seu Facebook oficial às 18h03 de 26 de Fevereiro, num post ilustrado com uma foto onde surgia a falar com jornalistas e um cachecol da bandeira portuguesa ao pescoço.

"Ontem ganhei o primeiro concurso mundial de cozinha espacial promovido pelo Centro de Astrobiologia de Madrid (afiliado da NASA)", escreveu Kiko, editando o texto do post anterior, às 18h16 de 28 de Fevereiro. Descubra as diferenças.

Segundo a revista Sábado, que hoje publicou um artigo sobre o assunto e fez a polémica marciana de Kiko Martins pegar fogo, a alteração dos textos foi efectuada após uma "primeira abordagem por email ao chef, a que se seguiu uma conversa ao telefone". O chef terá dito à revista que iria comentar o assunto no dia seguinte, mas "poucas horas depois foi à sua página de Facebook (e de Instagram) alterar o post" inicial.

"O jornalista ligou-me a dizer que havia uma imprecisão e fiz a correcção a seguir", explicou Kiko Martins à Fugas, quando questionado sobre a situação. Para o chef, que confessou estar a "ter uma manhã como nunca" teve na vida, o caso não faz sentido. "O concurso foi promovido assim", refere, aludindo à ligação à agência espacial norte-americana. Foi promovido por "um parceiro oficial da NASA". E, de facto, a ligação existe.

Repare-se: o Centro de Astrobiologia espanhol que promoveu o concurso "La Patata Marciana", em busca de uma receita para Marte, é afiliado oficial da NASA, que também apoia projectos ligados às futuras missões ao planeta vermelho, incluindo experiências gastronómicas, caso de investigações que envolvem batatas peruanas – que poderiam ser a base de uma futura alimentação "marciana" – em colaboração com o Centro Internacional da Batata. Este, com sede no Peru, é também um dos apoiantes da iniciativa dedicada à "batata marciana", assim como outras instituições científicas, algumas delas também afiliadas da agência espacial dos EUA, caso da Universidade de Engenharia e Tecnologia do Peru.

Kiko reconhece que pode ter havido alguma "simplificação" na promoção da sua participação e vitória no evento, e não só da sua parte, adianta: "é um chamariz maior quando se usa a NASA". E, diz-nos, "parece ser tudo uma questão de semântica". Já sobre a questão da receita "ir", literalmente, para Marte, sublinha que era esse "o mote do concurso", já que a NASA aponta 2030 para o ano da missão marciana. "E é a NASA que patrocina o projecto das batatas", sublinha o cozinheiro.

"Durante três meses e meio dediquei-me a este projecto que achamos muito giro, isto envolveu quatro funcionários meus", conta-nos Kiko, comentando que é uma "iniciativa credível, com organizações credíveis".

NASA? Marte? Batatas?

Embora os títulos das notícias sobre o caso possam induzir à total inexistência do concurso, este existiu, é relevante pelas organizações e profissionais envolvidos, e a vitória de Kiko na final do mesmo, que decorreu em Saragoça, é real, como a Fugas noticiou aqui. No artigo, tratava-se, como se referia logo à entrada, mais terra-a-terra, sem ligação directa à NASA metida ao barulho nem certezas de a receita "ir" a Marte: "Chef Kiko vence concurso internacional do Centro de Astrobiologia espanhol. O prato 'parece' Marte e até inclui bacalhau e chouriço". No artigo, foca-se a ligação do centro à NASA, mas não o patrocínio directo desta ao concurso, referindo-se que a iniciativa “La Patata Marciana" (A batata marciana) se destinava, precisamente, "a escolher a melhor receita a ser confeccionada numa futura missão a Marte”.

Kiko Martins a receber o troféu DR/Chef Kiko
A receita "marciana" de que se fala DR/Chef Kiko
Os diplomas dos vencedores, via Facebook oficial do concurso DR/La Patata Marciana
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Kiko Martins a receber o troféu DR/Chef Kiko

Adiantava-se que se tratava de “um exercício de criatividade que alia a arte culinária com o conhecimento científico”, que contava com o apoio de vários organismos espanhóis e internacionais, entrando nestes também, por exemplo, o Instituto de Técnica Aeroespacial de Espanha, além de outras instituições cientificas espanholas. As informações, aliás, podiam facilmente ser verificadas na altura no site oficial do concurso e no site do Centro de Astrobiologia de Madrid.

O passo maior para esta confusa ilusão marciana foi dado nem tanto pelos comunicados oficiais do gabinete de comunicação de Kiko – apesar do título empolgante de marketing: "É portuguesa a primeira receita que irá ser cozinhada em Marte e é da autoria do Chef Kiko" –, mas pelas próprias afirmações do cozinheiro, antes da vitória, a vários órgãos e, principalmente, no programa de Cristina Ferreira na SIC, onde o "Carnaval" foi maior e absolutamente marciano. 

No programa da apresentadora transmitido a 12 de Fevereiro (pode ser visto na íntegra aqui), o chef esteve presente vestido de astronauta (num ambiente algo carnavalesco) e cozinhou a sua receita. Numa espectacular entrada espacial com o seu fato de astronauta, dizia: "É uma comida que eu estou a preparar que vai a Marte", "é um concurso da NASA". "A sério?", pergunta Cristina". "A sério, nada mais credível no mundo que a própria NASA", "e convidaram-me para preparar uma receita para enviar para Marte” (sublinhe-se que o concurso era aberto todos os profissionais e amadores). É, diz, "um concurso do mundo inteiro, com mais quatro cozinheiros do mundo inteiro" na final. Mais tarde, a apresentadora lembra que Kiko "está num concurso da NASA e vai levar estas bolinhas para Marte", diz a apresentadora. "Para Marte", ecoa o chef. Como lembra a Sábado, Kiko também fez afirmações similares no programa Cinco para a Meia-Noite e no Jornal da Uma da TVI. 

Para o chef, há aqui uma confusão, já que quando se referia a ter recebido um convite foi de "um amigo ligado às ciências" que lhe mostrou a iniciativa e o incentivou a participar. 

À revista que agora levantou a polémica, o chef acabaria por confirmar, por e-mail, que não tinha participado "em nenhum concurso organizado directamente pela NASA", mas acaba por entrar noutra armadilha, criada pelo próprio, já que é citado como tendo escrito que nunca se intitulou "vencedor de um concurso da NASA". "Nem sou, nem disse que era", citam.

Uma falha “técnica”, já que, embora a Sábado refira que teve o cuidado de fazer "print screens" das diferenças do post do Facebook, como se não bastasse o programa de Cristina Ferreira e as outras aparições televisivas, qualquer utilizador da rede social poderá verificar as alterações através da função "Ver histórico de edições".

Mas, para o chef, tratou-se apenas de uma "imprecisão", e nada mais, que foi corrigida. "Esta imagem de marketing não fui eu que a criei, se calhar foi por ter aparecido de astronauta" na tv, comenta, admitindo que toda esta questão o pôs "triste". "Em vez de nos orgulhar que num concurso com tanta gente, cozinheiros peruanos, colombianos, etc., ganhe um português, a relevância agora é dada à polémica. Devo incomodar algumas pessoas", diz Kiko. 

A receita marciana

Em relação às bases do concurso, como noticiava a Fugas, “La Patata Marciana” esteve aberto a cozinheiros profissionais numa primeira fase, tendo passado a aceitar, numa segunda fase, o público em geral. O objectivo era criar uma receita que incluísse uma das “super batatas” escolhidas por cientistas como “candidatas a alimentar os inquilinos de uma futura base em Marte”, lia-se nas bases do concurso. Kiko Martins venceu, como se podia ver nos diplomas publicados no Facebook da iniciativa (o segundo diploma é para uma cozinheira amadora de 15 anos: venceu numa secção paralela como noticiou o jornal espanhol Heraldo). A organização, além do Centro de Astrobiología de Madrid, do Centro Internacional da Batata e da UTEC - universidade peruana de Engenharia e Tecnologia, inclui a Fundação Albireo Cultura Científica, contando o projecto com a colaboração da Fundação Espanhola para a Ciência e Tecnologia do ministério espanhol da Ciência e Inovação, Instituto Nacional de Técnica Aeroespacial e Fundação COTEC para a Inovação.

A receita criada pelo chef, apesar deste flop NASA, não nasceu do nada nem foi criada por mero golpe de génio: Kiko trabalhou em parceria com o canal Bit2Geek, composto por cientistas, alguns ligados à exploração espacial, de forma a aconselhar-se sobre os “procedimentos e tipos de alimentos que pudessem ser enviados para o planeta”, referia-se.

Nuno Chabert, administrador do site, confirmava, na altura, que Kiko contou com a colaboração de cientistas ligados à genética, biologia molecular ou física e que conseguiu fazer um prato apelativo, “longe dos saborosos, mas pouco apresentáveis gelados que os astronautas da Estação Espacial Internacional comem de dentro de sacos”. A receita inclui "batata envolvida com chouriço, azeitonas, bacalhau, algas, cebola, salsa e alho” e “ovo desidratado”

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