#Hashtag Portugal: “Os nossos populistas são muito estúpidos”

Apesar daquilo a que José Gil chama a “velha moral conservadora”, em Portugal abundam exemplos de fake news e o país não está livre de ser empurrado pela torrente populista. Basta que apareça o protagonista certo.

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Em 1975, os escândalos não faziam vítimas à velocidade do poder de propagação das redes sociais. Nelson Garrido

O famoso (mas falso) relógio de 21 milhões de euros que apareceu no pulso da líder do BE, Catarina Martins, em fotos manipuladas e disseminadas pela Internet, e que serviram para acusar a líder do BE de ser “a maior fraude da política portuguesa depois de António Costa”, esteve longe de ser caso inédito em Portugal. O politólogo Pedro Adão e Silva recua a 1973 para recuperar o episódio da mentira espalhada sobre ultraje à bandeira nacional por Mário Soares, durante uma manifestação em Londres que obrigou o ex-presidente da República a inúmeros desmentidos, e ao célebre caso da pretensa dívida de Francisco Sá Carneiro à banca a cujo pagamento foi acusado de ter procurado escapar.

Em 1975, os escândalos não faziam vítimas à velocidade do poder de propagação das redes sociais, mas o processo contra Sá Carneiro arrastou-se durante anos e as manchetes do Diário, dirigido por Miguel Urbano Rodrigues, levariam a que, em 1980, já primeiro-ministro, Sá Carneiro intentasse contra o jornal uma acção judicial que escalou ao Supremo Tribunal de Justiça, e cujo desfecho parece nunca se ter esclarecido por completo - o fundador do PSD morreria pouco depois. Mário Soares justifica aqui um parêntesis para lembrar que fez desta suspeita uma arma de arremesso político, tendo chegado a exibir publicamente uma nota com a cara de Sá Carneiro – facto pelo qual tentaria penitenciar-se mais tarde, assumindo-se perpetrador de “ataques infelizes” ao fundador do PSD.

Se considerarmos que foi na sequência deste escândalo político que o sigilo bancário foi criado e que o curso político do país foi condicionado por murais com inscrições do tipo “Sá Carneiro, caloteiro, paga o que deves”, temos exemplo claro de como as percepções colectivas podem alterar a realidade, tenham ou não factualidade. Ou de, sustenta Pedro Adão e Silva, como “esse lado ilusório sempre existiu no debate público e no debate político”.

A velha moral

Com os actuais mecanismos de propagação, quais são os riscos de Portugal ser empurrado para a torrente populista, num ano que, como 2019, será marcado por três eleições – europeias em Maio, regionais da Madeira em Setembro e legislativas em Outubro? “Por razões ‘esquisitas’, que têm que ver com a demografia, a geografia até, Portugal é um caso muito especial. Ainda há uma tradição, sedimentos e opiniões conservadoras e estratificadas que ninguém ousa pôr em causa, como a tolerância, o humanismo. E também porque ainda está muito atrasado em termos de desenvolvimento das tecnologias, resiste aos populismos muito mais do que os outros países”, contextualiza José Gil, recuperando uma recente afirmação sua na qual defendia que “há uma velha moral nos portugueses que impede excessos populistas”.

Mas não se pense que o país está imune. “Não está imune. E isso já devia estar a ser pensado. Quando falamos em protestos inorgânicos, estamos a usar um eufemismo para designar o populismo. Porque o embrião do populismo está lá”, acrescenta, referindo-se, por exemplo, ao protesto convocado, em Dezembro, pelo movimento “coletes amarelos” em Portugal. Claro, foi um fracasso offline, se considerarmos que a promessa de uma grande manifestação nas ruas falhou. Mas o tema fervilhou nas redes sociais e a comunicação social ajudou a amplificar esse descontentamento. “A diferença relativamente a França”, destrinça José Gil, “é que aqui os sindicatos têm uma cobertura da população trabalhadora muito mais abrangente”. Isto é, canalizam o descontentamento.

Pedro Adão e Silva destaca a este propósito o “singular” papel que o PCP vem desempenhando desde a transição para a democracia e que “é um papel de canalização do descontentamento popular para as organizações formais, quer através do partido no Parlamento quer através da CGTP”. Ainda assim, o que os “coletes amarelos” mostraram ao politólogo é que é apenas “uma questão de tempo”. “Essa procura de uma resposta a que, para simplificar, podemos chamar populista, já existe”, aponta. Os sinais disso podem ler-se “nos números da abstenção” (45% nas autárquicas de 2017) e “no crescimento consistente em todas as eleições dos votos brancos, nulos e noutros partidos” de fora do sistema.

Nesse sentido, o Chega de André Ventura, que está à espera de se constituir partido, não virá responder a este anseio? “Não. Porque a oferta populista em Portugal comete quase sempre um erro que é colocar-se numa parte do espectro político. E aquilo de que as pessoas andam à procura não é de um partido de extrema-direita. É de um partido que aponte para a regeneração moral e que evite exactamente a clivagem esquerda/direita”, sustenta.

Em retrospectiva, o politólogo aponta dois exemplos de campanhas regeneradoras “que foram um sucesso eleitoral”: a de Fernando Nobre nas presidenciais de 2011 (14,1% dos votos) e a de Marinho Pinto nas europeias de 2014 (7,1%). “Sempre que aparece alguém que se proponha regenerar o regime, sugerindo que é preciso falar para ‘os outros’ e não apenas para os de dentro, e se não se colocar nem à esquerda nem à direita, tem óptimos resultados eleitorais”, enfatiza, para concluir que, mais do que a “velha moral” referida por José Gil, o que tem travado o passo de Portugal na deriva populista que grassa mundo fora é a falta do protagonista certo.

“Este protagonista tem de ter notoriedade pública, mediática e televisiva, uma agenda regeneradora. Tem de aparecer como dizendo umas verdades, de colocar em causa aquilo que são as instituições e os padrões de comportamento do regime; tem de revelar preocupação com o tema da corrupção e de sugerir que é um político diferente dos outros. E quem preencher estes requisitos terá bons resultados eleitorais. Eu acho é que os nossos populistas são muito estúpidos”, conclui, só meio a brincar.

A receita será tanto mais eficaz quanto mais expressiva é a percentagem de portugueses que se declaram incapazes de identificar notícias falsas. No último Eurobarómetro, apenas 48% dos portugueses se declararam capazes de identificar notícias deturpadoras da realidade ou falsas – a média europeia é de 58%.

O inimigo “está nas nuvens”

Neste caldo em que Portugal pachorrentamente se vai movendo, e desligado o botão do pânico relativamente ao desemprego, os portugueses inquiridos para o Eurobarómetro, entre 8 e 19 de Novembro de 2018, apontaram a segurança social e a saúde como os problemas mais importantes do país. Mas também aqui Pedro Adão e Silva aponta desfasamentos de percepção induzidos pelos media que passaram semanas focados no escrutínio dos motivos para as paralisações no sector. “A visão muito crítica do Serviço Nacional de Saúde é uma coisa muito mais do espaço mediático e de pessoas que não têm contacto directo com o SNS. Os utentes fazem uma avaliação positiva”, considera.

Há sintomas que não se associam logo a esta doença. Com 89 anos, o psicanalista António Coimbra, detecta transformações claras nos desabafos de divã dos seus doentes: “Dantes procuravam-me por dificuldades nas relações amorosas e familiares, hoje aparecem-me muitos pacientes por perturbações no trabalho. As pessoas estão em burnout, em conflito com as empresas onde trabalham, a vida profissional tornou-se má”, conta, para acrescentar que, se antigamente o alvo dessa zanga era um patrão claramente identificado, “hoje as pessoas nem sabem quem é que as oprime, são sociedades anónimas. O inimigo é anónimo, está nas nuvens”. E isso, conclui, “não lhes permite exercer ou direccionar a agressividade”.

Um eleitorado zangado, onde pululam activistas de sofá, forçados pelas circunstâncias a desinflacionar os abcessos íntimos nas redes sociais e nas caixas de comentários (com a impunidade que deriva da ausência de confrontação com o outro), não é, como se adivinha, o terreno mais fértil para uma democracia que se quer robusta e sadia. E se quiséssemos deitar o país no divã, para o protegermos deste perigo, o que lhe recomendaria, doutor? “Menos horas de trabalho, mais tempo para estar com a família e para perder em almoços demorados e em tertúlias; menos pressa de chegar”, responde o psicanalista.

A montante, prescreve ainda, há tarefa preventiva fundamental: “É importante que as escolas comecem desde cedo a desenvolver o pensamento crítico: que haja menos aulas clássicas e mais tempo de diálogo; que ponham os alunos a investigar e a procurar os problemas. Se for uma aula de Botânica, levem-nos para o Parque de Monsanto”, desafia. O importante é que haja toque, “contacto directo com a realidade”, porque “é na relação com as coisas, as pessoas, o mundo, que as aprendizagens se fazem”.

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