Portugal na União Europeia sem traumas

À emigração, ao exílio e ao selo europeu das elites, somaram-se as vicissitudes do pós 25 de Abril de 1974. Em décadas, a ideia da Europa criou raízes.

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A enésima versão do galo de Barcelos de Joana Vasconcelos F.A.U.
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A enésima versão do galo de barcelos de joana vasconcelos Enric Vives-Rubio
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Francisco Assis, eurodeputado do PS que não se recandidata Rui Gaudêncio
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Jaime Nogueira Pinto, professor universitário Daniel Rocha

A percepção, acto ou efeito de perceber, antecipa decisões à margem da realidade e, mesmo, ao arrepio dos factos. Desenha tendências, gera expectativas e provoca desenlaces. A relação de Portugal com a União Europeia não escapa a este crivo. Como nos vemos inseridos nesse espaço maior poderá determinar o sentido de voto, fervor, indiferença ou cepticismo. Francisco Assis, eurodeputado socialista desde 2014 e que não renova candidatura, e o professor universitário e empresário Jaime Nogueira Pinto abordaram para o PÚBLICO dois aspectos deste relacionamento: se nos vemos insignificantes em Bruxelas e se as normativas comunitárias nos descaracterizaram ao ponto de não nos reconhecermos. Parece não haver motivo para traumas.

Houve uma grande euforia, a ida para a Europa foi um seguro de vida para a classe política depois do PREC [Processo Revolucionário em Curso, o denominado Verão Quente de 1975, após o 25 de Abril de 1974]”, constata Nogueira Pinto. “Era para não haver riscos de deriva radical à esquerda e autoritária à direita, é capaz de assim ter sido, mas pagámos um alto preço com a ideia de entrarmos de qualquer maneira”, observa.

Foi a solução com carácter de urgência, concluído o ciclo imperial com a descolonização. O professor assegura que parte dos portugueses tem uma sensação de nostalgia. “Para essa parte, a minha geração que fez a guerra e que ficou quase zangada, a redução para um rectângulo subsidiário da Europa e da península [ibérica], leva ao incómodo, como os desempregados depois da grandeza”, descreve. Reconhece que existe outra versão. “Uma visão mais politicamente correcta, que acentuou os massacres e o esclavagismo [da colonização africana], mas que também considera a Europa uma forma de colonialismo económico, de divisão internacional do trabalho organizada pelo grande capitalismo”, contrapõe. Refere-se a uma franja da esquerda.

Mas o destino europeu impôs-se e, recorrendo ao jargão político, foi o mal menor. A vivência europeia viria a anular este quase óbice para alguns, converteu a Europa em hábito e, ainda hoje, depois da crise económica e da troika, somos um dos povos com menos dúvidas. São os motivos da pertença que fundamentam as avaliações da presença.

Ajudas em vez de investimento

“A classe política ainda tem uma certa euro-felicidade, mas há um discurso mais cauteloso, mais soberanista, que resulta do que se está a passar. A Europa só poderia ter sido o 'el dorado' se a globalização não a tivesse atingido, se tivesse criado um certo proteccionismo europeu”, comenta Jaime Nogueira Pinto.

Portugal não é objectivamente no contexto europeu um país pequeno, em termos europeus estamos na média”, destaca Francisco Assis. “Creio que muita da nossa diferença tem a ver com a vocação internacional como país atlântico e marítimo projectado para o exterior, foi assim na projecção planetária das Descobertas e, hoje, temos uma vocação internacional”, assinala.

Portugal é, de facto, um país médio no contexto europeu. Entrou para a Comunidade Económica Europeia (CEE) em 1986, no quarto grupo aderente - foi um dos primeiros 12 países. É o 11.º maior em população, à frente da Dinamarca ou da Áustria, mas atrás da Roménia, por exemplo. E está em 13.º lugar quanto à superfície ocupada, sendo maior do que Malta, Chipre, Bélgica, Irlanda ou Croácia.

“Essa realidade é um valor a ser politicamente usado, mas a ideia de ponte com as periferias, de sermos uma espécie de intérprete, tem de ser bem medida”, pondera Nogueira Pinto. “Penso que as instituições europeias penalizam o investimento numa zona, que é de risco, e depois são preferidas as ajudas humanitárias”, critica. Com experiência na relação com África, o professor e empresário reescreve, assim, o conhecido dilema do peixe e da cana de pesca.

Além da história, do passado, há o desempenho, o presente. “As presidências europeias de Portugal [1992, 2000 e 2007] sempre foram saudadas como conseguidas, temos eurodeputados activos e uma imagem muito positiva, tal deve-se à forma de actuar das elites portuguesas que são muito abertas”, assinala o eurodeputado.

Em oito eleições para o Parlamento Europeu, tal como noutros Estados-Membros da União, em Portugal foi aumentando a abstenção, mas o essencial do núcleo duro manteve-se. As projecções de Estrasburgo para as eleições de 26 de Maio em Portugal, divulgadas na passada quinta-feira, prognosticam a estabilidade entre as principais forças políticas, auguram transferências de voto e o desaparecimento dos dois deputados do Partido Democrático Republicano de Marinho e Pinto. Mas não anunciam a entrada em liça de opções antieuropeístas oriundas de Portugal. “Admito que surja uma visão de direita antieuropeísta, mas não sei se é nestas eleições, na Aliança há uma contradição entre o discurso de Pedro Santana Lopes e do candidato Paulo Sande”, analisa Francisco Assis.

Não haver desafecto europeu politicamente organizado e eleitoralmente manifesto é sinal de comodidade face a Bruxelas? “Há, em Portugal, uma direita antieuropeísta, católica e conservadora, que pensa que o factor católico é fundamental contra a Europa laica, é uma direita nacionalista quando o projecto europeu é de diluição do nacionalismo exarcebado e também do Estado-Nação”, opina o eurodeputado socialista.

“Temos um trunfo fabuloso, somos uma Nação antiga e unida, hoje os problemas não são de luta de classes, mas de identidades plurinacionais”, assinala Jaime Nogueira Pinto, com o olhar posto no vizinho espanhol. “A Europa está a atravessar um período de recuo, há uma espécie de contrabando, passou-se de uma entidade económica a uma política quase federal”, critica.

Remessas antes de fundos

“Hoje, há uma ofensiva de núcleos minoritários em duas áreas importantes, a academia e os media, há uma visão apocalíptica do mundo, relatos de terror com fins securitários, de guerras de baixa intensidade como os atentados na Europa, que vão levar a um reforço securitário aplaudido por toda a gente”, antevê. “As migrações na Europa sempre correram bem, eram de cristãos, brancos, culturalmente não eram diferentes, pelo que a questão da integração é muito importante”, enfatiza, numa referência aos actuais surtos migratórios com origem na margem sul do Mediterrâneo e da África subsariana. 

Esta onda de choque já se manifestou em alguns países europeus mas não alterou a percepção dos portugueses quanto à sua forma de encaixe na União. O facto de Portugal ter sido um país emissor de migrantes para a Europa nos anos 60, pode ser a chave de compreensão para com as novas correntes migratórias. E, também, de ter propiciado uma aculturação de décadas da ideia europeia, como destino de bem-estar e futuro.

“A nossa emigração dos anos 60 do século XX permitiu uma relação favorável com a Europa”, reconhece Nogueira Pinto. A este facto, junta a visão favorável que tradicionalmente as elites tinham do selo europeu. “A emigração foi muito importante, a Europa chegou às nossas aldeias a partir de finais dos anos 50 e 60 sobretudo para a França e a Alemanha”, concorda Francisco Assis. A que se soma, o facto de a Europa ter sido território de exílio e farol de liberdades.

“Os emigrantes trouxeram a ideia de um mundo mais justo, mais desenvolvido e foram, sem o saber, divulgadores de outras realidades, o regresso de férias, no mês de Agosto, nos anos 70, confirmava a expectativa”, relata. A exibição de sinais de prosperidade, os relatos de outra organização social e política aproximaram-nos da Europa. “Para a direita nostálgica, esta realidade é um problema, porque mudou o imaginário do país rural, fechado e medíocre de Salazar, aqui pode residir um travão ao actual populismo nacionalista de direita”, admite. Afinal, antes dos fundos comunitários, já chegavam as remessas dos emigrantes aos cofres do Estado.

A integração europeia teve consequências na lógica de uma nova divisão de trabalho. “Muita coisa desapareceu, deixámos de ter indústria, grupos económicos, temos empresas de grande distribuição, fomos pagos para não produzirmos”, critica Nogueira Pinto.

Mas não houve o efeito de aguarrás, não corroeu tradições, diluiu costumes ou ridiculizou especificidades. A destruição de velhas práticas não foi dirigida por Bruxelas, antes fruto da sua inadequação produtiva, da falta de mão-de-obra intensiva, pela emigração e a guerra colonial, do envelhecimento e perda da população. A concentração metropolitana, a consequência deste percurso, é fruto de falta de políticas públicas nacionais, não de ditames externos.

O campo desapareceu e, salvo algumas excepções, é uma imitação das cidades com centros comerciais, já a França manteve uma ruralidade antiga, aqui temos a febre das rotundas”, lamenta o professor. “Não perdemos vectores de identidade, ganhámos com os outros, o êxito do programa Erasmus é disso prova”, contrapõe Francisco Assis.

Há coisas da nossa juventude que desapareceram, há mais rigor, como o controlo alimentar que não existia há 40 anos e que, provavelmente, mesmo sem a Europa, tinha de ser feito para garantir as exportações”, exemplifica. “Nem as touradas acabaram e, a acabar, não é devido à Europa mas por uma nova consciência nacional”, ironiza. Até o galo de Barcelos, a modernização estilista do rural de António Ferro e da sua esquipa do Secretariado de Propaganda Nacional dos anos 1930 do Estado Novo, tem a sua enésima vida como símbolo. Agora do turismo. E com uma versão king size, o Pop Galo, de Joana de Vasconcelos de 2016. 

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