Donald Trump: uma campanha blindada pelo medo e à prova de factos

A ideia de que os eleitores de Donald Trump estão mal informados e têm poucos rendimentos é repetida até à exaustão, mas há estudos que sugerem outras explicações. Uma resposta pode estar na forma como os seres humanos respondem à sensação de medo.

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Donald Trump produziu mais uma imagem icónica esta semana Yuri Gripas/Reuters

No dia 25 de Outubro de 2016, duas semanas antes de Donald Trump surpreender o mundo ao tornar-se no 45.º Presidente dos Estados Unidos da América, um advogado chamado Lawrence Rosen falava num tribunal de Nova Iorque em defesa do magnata do imobiliário num caso de difamação – Trump acusara a consultora política Cheryl Jacobus de mendigar um emprego na sua equipa da campanha eleitoral, e Jacobus jurava que tinha sido ela a recusar uma proposta de trabalho.

Para dar cor aos seus argumentos, o advogado de Trump regressou aos tempos de criança, quando terminou um namoro de escola: "Eu acreditava que tinha sido eu a pôr fim ao namoro, e foi isso que disse aos meus amigos; mas ela acreditava que tinha sido ela, e essa era a história que corria no recreio", disse Rosen à juíza Barbara Jaffe, antes de concluir: "É a percepção. A percepção é a opinião de uma das partes. E, neste contexto, a percepção é a realidade."

Em muitos aspectos, a longa campanha eleitoral de 2015 e 2016 para a escolha de um Presidente dos EUA pode ser vista a partir daquela ideia de percepção que o advogado de Trump usou em tribunal.

As duas verdades 
Naquelas primeiras horas de 9 de Novembro de 2016, quando já se percebia que Trump ia roubar a Hillary Clinton o bilhete dourado para a Casa Branca, de pouco valeria promover um debate sobre percepção e realidade.

Nessa noite, nas ruas de Nova Iorque, uma apoiante de Trump explicava ao PÚBLICO qual era a sua verdade: "Precisamos de uma mudança. Tivemos oito anos de Obama, temos o défice fora de controlo, a imigração está uma desgraça. Há cada vez mais pessoas a entrar no país e a causar problemas."

Mas os números oficiais mostravam uma verdade diferente.

Sim, o défice mais do que triplicou de 2008 para 2009, mas por essa altura o Presidente Barack Obama teve de responder à maior crise financeira desde a Grande Depressão. E os mandatos de Ronald Reagan e George W. Bush cavaram um fosso maior no défice, em termos percentuais, do que os mandatos de Barack Obama. 

E os números da imigração também não concordavam com a verdade da apoiante de Trump: as detenções na fronteira desceram de um máximo de 1,8 milhões no ano 2000 para 462 mil em 2015 e 530 mil em 2016.

O discurso do medo 
Quatro meses antes das eleições, numa semana quente em Cleveland, no estado do Ohio, Trump tinha servido a sua versão da verdade aos milhões que acompanhavam em directo a convenção nacional do Partido Republicano. O seu discurso de encerramento, de 76 minutos, disparou uma dose de medo a cada palavra.

"Os americanos que estão a ouvir-me esta noite viram as recentes imagens de violência nas nossas ruas e o caos nas nossas comunidades. Muitos foram testemunhas pessoais desta violência, e alguns foram vítimas", disse Trump. "Tenho uma mensagem para todos vós: o crime e a violência que afligem a nossa nação vão acabar em breve – muito em breve."

Em poucas palavras, o candidato do Partido Republicano apresentava-se a milhões de eleitores como o salvador que ia resolver todos os problemas – como se o país fosse um arranha-céus em ruínas a precisar de um génio da construção para o recuperar. E esse arranha-céus magnífico, que Barack Obama tinha arruinado, corria o risco de desabar com a eleição de Hillary Clinton e o seu "legado de morte, destruição e fraqueza."

"Dividir para conquistar" 
Não era a primeira vez que um candidato prometia restaurar a ordem numa América mergulhado no caos. Em 1968, Richard Nixon também se apresentou aos eleitores como "o Presidente da lei e da ordem", para salvar o país da espiral de motins e protestos dessa década.

"É habitual, e até tranquilizador, olhar para as tácticas e para a retórica de Trump como se fossem uma novidade", disse ao PÚBLICO Anat Shenker, uma investigadora na área da linguística cognitiva e consultora de comunicação de Oakland, na Califórnia.

"Essas tácticas são novas apenas na sua audácia, não na substância", disse Shenker, apontando como exemplo a Estratégia Sulista do Partido Republicano na década de 1960, quando candidatos como Barry Goldwater ou Richard Nixon "usaram o medo, a raiva e o ressentimento entre os eleitores brancos de forma deliberada".

"Em muitos aspectos, trata-se do mais antigo truque político: dividir e conquistar", disse Shenker. "À medida que vemos uma minoria cada vez mais poderosa a ficar cada vez mais rica, tem de haver uma explicação para as dificuldades e a insegurança que isso causa ao resto da população. E a história mais imediata e poderosa é dizer que a culpa é 'deles' – dos estranhos que não se parecem connosco e que não pensam nem falam como nós."

Racismo, atentados e imigração 
Nos anos que antecederam as eleições de 2016 para a Casa Branca, não faltaram argumentos para amplificar a sensação de medo.

O Verão de 2014 voltou a acordar os EUA para a ferida aberta do racismo com os motins em Ferguson, no Missouri, por causa da morte de Michael Brown – um jovem negro baleado por um polícia branco.

No ano seguinte, os atentados de extremistas islâmicos contra o jornal satírico francês Charlie Hebdo, em Janeiro, e no Bataclan, em Novembro, fizeram 142 mortos e reforçaram o medo de que o território norte-americano pudesse voltar a ser palco de um ataque terrorista.

Pelo meio, no Verão de 2015, a Europa confrontara-se com um pico na chegada de imigrantes e refugiados, a maioria da África subsariana e da Ásia.

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E o ano de 2015 – o ano em que Trump anunciou a sua candidatura prometendo construir um muro anti-imigração na fronteira com o México e proibir a entrada de muçulmanos no país – terminou com um atentado em solo norte-americano, quando um casal de extremistas islâmicos matou 14 pessoas em San Bernardino, na Califórnia.

Conservadores "mais sensíveis" 
"Seja qual for a nossa ideologia, nós evoluímos para sentirmos de forma particular o medo em resposta a ameaças imediatas e tangíveis. Foi isso que nos salvou dos predadores", disse Anat Shanker.

Foi isso que aconteceu na sequência dos atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001 nos EUA. Em poucos dias, o Congresso norte-americano aprovou, com largas maiorias em ambos os partidos, o Patriot Act – uma lei que permitia a detenção indefinida de imigrantes, buscas a casas sem conhecimento ou consentimento dos proprietários e escutas telefónicas sem mandado judicial.

Mas os estudos mostram que a actividade cerebral à volta do medo difere consoante a ideologia política.

"Em termos gerais, as pessoas mais conservadoras são mais sensíveis e reactivas a estímulos negativos", disse a investigadora. "A amígdala, por vezes também chamada de cérebro reptiliano, e que é responsável por processar emoções fortes como o medo, é fisicamente maior em pessoas conservadoras."

Em 2017, uma equipa de investigadores da Universidade de Yale, no Connecticut, disse que conseguiu "transformar conservadores em liberais". Quanto mais seguros se sentiam os indivíduos conservadores antes de responderem a um inquérito sobre direitos dos homossexuais, aborto, feminismo e imigração, mais liberais eram as suas respostas a esse inquérito.

"Os conservadores têm uma reacção mais forte à ameaça física do que os liberais", disse John Bargh, um dos autores do estudo e professor de Psicologia Social em Yale.

"E essa maior preocupação com a segurança física parece ser determinada muito cedo: num estudo da Universidade da Califórnia, quanto mais medo demonstrou uma criança de quatro anos numa situação de laboratório, mais conservadoras foram as suas atitudes políticas 20 anos mais tarde", disse o investigador num texto publicado em 2017 no Washington Post.

Outros estudos, salientados pelo neurocientista Bobby Azarian na revista Psychology Today, mostram que "quando as pessoas são recordadas da sua própria mortalidade, como acontece quando o medo é explorado, passam a defender com mais vigor as pessoas que partilham a sua visão do mundo e a sua identidade nacional ou étnica, e agem com mais agressividade em relação aos outros".

Isto pode explicar, em parte, porque é que os eleitores de Donald Trump não devem ser encaixados num único grupo de pessoas, com pouca escolaridade e rendimentos – ao contrário do que ficou no imaginário colectivo, dois terços dos seus eleitores nas primárias tinham salários acima da média nacional e a percentagem de apoiantes sem estudos universitários (70%) correspondia à média de todo o Partido Republicano e do país, segundo uma análise feita em 2017 por Nicholas Carnes e Noam Lupu, professores de Políticas Públicas e Ciência Política nas universidades de Duke e de Vanderbilt.

O poder limitado dos factos 
E se o medo for provocado com base em informações falsas – como o exagero dos números da imigração ilegal, por exemplo –, a ideia de que o antídoto é uma torrente de factos pode ser mais optimista do que parece.

Numa série de estudos na Universidade do Michigan, em 2005 e 2006, os investigadores descobriram que as pessoas mal informadas raramente mudam de opinião quando são confrontadas com correcções, e até se refugiam mais nas suas crenças.

"No geral, é ameaçador admitir que estamos enganados. É um mecanismo de defesa natural para evitar a dissonância cognitiva", disse Brendan Nyhan, um dos autores dos estudos, num texto publicado no jornal Boston Globe em 2010.

A isto soma-se outro fenómeno, que o psicólogo social David Dunning, também da Universidade do Michigan, usou para explicar "o amor por Donald Trump" na campanha eleitoral de 2016.

"As investigações em psicologia sugerem que as pessoas, no geral, sofrem daquilo a que se passou a chamar o Efeito Dunning-Kruger", disse o investigador num texto publicado no Politico.

"As pessoas que têm sérias lacunas nos seus conhecimentos e na forma como executam uma tarefa, tendem a não perceber o quão pouco sabem e o quão mal executam essa tarefa. E continuam a ignorar que não a executam bem. Isto inclui os nossos cálculos políticos", disse Dunning.

Alguns estudos indicam que pode haver uma saída para o ciclo de informações falsas e manipulação do medo – armas tão antigas como a política, mas que são amplificadas pela maior facilidade de comunicação dos tempos modernos.

"Em vez de permitirmos que os nossos fios sejam facilmente puxados por outras pessoas, podemos tornar-nos mais conscientes do que nos motiva e trabalhar mais para basearmos as nossas opiniões em conhecimento factual, incluindo informação recolhida fora das nossas câmaras de ressonância", disse o investigador John Bargh, apontando para o seu estudo em que os indivíduos conservadores assumiram posições mais liberais.

"Sim, as nossas opiniões podem endurecer dado o ambiente certo, mas o nosso trabalho mostra que são mais fáceis de mudar do que pensamos", concluiu o investigador.

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