O “emocionante e inquietante” transe do Carnaval de Schignano

O fotógrafo Mattia Vacca registou, ao longo de nove anos, o ancestral e atípico Carnaval de Schignano, junto ao Lago de Como, em Itália. Winter’s Tale transporta-nos para uma “emocionante e inquietante dimensão de transe tribal” que encontra raízes no império romano.

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©Mattia Vacca

Mattia Vacca nunca gostou do Carnaval. Foi por acaso que, em 2006, “tropeçou” no muito particular Entrudo da remota aldeia de Schignano, junto ao famoso Lago de Como, em Itália. “Documentar o evento foi a minha primeira reportagem enquanto fotógrafo profissional”, recorda, em entrevista ao P3, via email. “A memória do caos desconcertante, da confusão anárquica do Carnaval de Schignano, nunca me abandonou.” Por esse motivo, voltou no final de 2010. Como que cativo de um feitiço carnavalesco, Mattia regressou no ano seguinte e regressaria todos os anos, sempre munido de uma câmara fotográfica. O projecto e fotolivro Winter’s Tale, uma edição de autor, resume vários anos de trabalho nas montanhas de Como.

Seja qual for a época do ano, quem chega a Schignano encontra uma placa que diz “Carnaval lento”. Não é por acaso. A comunidade, que “vive, literalmente, para os dias de Carnaval”, exige aos visitantes que mudem de ritmo, que abrandem e se preparem para imergir numa “emocionante e inquietante dimensão de transe tribal”, que será, segura e radicalmente, diferente daquela que conhecem. Contribuem para essa atmosfera as máscaras de madeira, a ausência de comunicação verbal e um frenesim errático que se apodera dos intervenientes. “Esta noite, deixamos de ter uma linguagem, deixamos de ter um rosto ou um mester” canta Davide Van de Sfroos na canção dedicada ao El Carnevaal de Schignan. “Somos apenas um traje, uma garrafa de vinho e uma máscara de madeira.”

Mattia Vacca
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Mattia Vacca

Todos os habitantes da pequena aldeia, sem excepção, envolvem-se nos preparativos para a festividade. A tradição, que encontra raízes na remota vigência do império romano, tem por base a dicotomia entre o belo e o bruto. Na origem está o facto de, no passado, o Carnaval de Schignano ter sido uma cerimónia de despedida. Todos os anos, durante nove meses, os homens migravam para outras paragens em busca de trabalho. Alguns regressariam igualmente pobres, mas outros encontrariam, fora de casa, a riqueza que lhes iria conferir um estatuto de superioridade na aldeia.

Esses são os papéis que estão na base da dramaturgia deste rito carnavalesco. De um lado, os pobres e sujos, os brut, cobertos de trapos e sinos pesados; do outro, os ricos e belos, os beii, que envergam roupas coloridas, rendas, e que passeiam grandes e simbólicas barrigas. La Ciocia, a mulher zangada de um bell, é a única personagem feminina — encarnada, invariavelmente, por um homem. La Ciocia é estridente, é polémica, e queixa-se repetidamente do assédio do seu esposo ao longo da festividade. O Sapeur veste peles de cordeiro e exibe um frondoso bigode; o Sigurità representa a autoridade e o seu papel é o de assegurar que tudo decorre “em conformidade” com a tradição. Os papéis de género mantêm-se bem vincados: eles produzem as máscaras e elas os trajes que serão usados por eles durante os dias de festa. Só os homens assumem um papel activo na encenação.

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Mattia Vacca

Mattia Vacca garante que foi o primeiro fotógrafo a penetrar profundamente no seio desta “orgulhosa e desconfiada” comunidade. “Eles não gostam de turismo ou de atenção”, explica. Foi a presença repetida e a progressiva relação de confiança que estabeleceu com os habitantes que fez com que A Winter’s Tale se tornasse uma realidade. “Graças ao acesso que me foi garantido pela população, não tive quaisquer limitações no meu registo e pude exceder a mera representação pública deste Carnaval — aquela que é visível a todos.” Acompanhou todos os preparativos, desde a talha das máscaras até à criação de Carlissep, o fantoche que representa o Carnaval e se mantém, ao longo dos três dias, na praça principal de Schignano. Há dois momentos que recorda com carinho: aquele em que foi admitido no cortejo nocturno e quando foi convidado para se mascarar e integrar o Carnaval “como um deles”. “Tenho noção da enorme honra que me deram ao permitirem que me mascarasse e vivesse o Entrudo como um dos habitantes”, reflectiu. “Eu fui o primeiro e único forasteiro na história da aldeia a colher este privilégio.”

O fotógrafo da agência Prospekt, nascido e criado em Como, recorda em particular a madrugada do Dia das Cinzas de 2013, que se seguiu ao Entrudo. “Quando acordei, bem cedo, a aldeia estava coberta de neve. Em Schignano, o único som que se podia ouvir era o dos badalos dos mascarados. Tudo me pareceu poético e arcaico.” Mesmo passados todos estes anos, a surpresa nunca foi um elemento ausente. “Schigano mantém sempre a capacidade de me surpreender”.

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