Não há lã que lhes escape em dias de Carnaval

Em Vale de Ílhavo, o Carnaval é feito de tradições portuguesas, sem sambas nem outras importações. As grandes estrelas da festa são os cardadores, uma espécie de sociedade secreta masculina.

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Adriano Miranda
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Ajeitam as meias de renda, apertam os cintos carregados de chocalhos, endireitam a vestimenta (roupa íntima feminina). Dão os últimos toques nas máscaras feitas de pele de carneiro, com olhos em cortiça e carregadas, na parte de trás, de fitas de papel coloridas. Mais umas quantas esguichadelas de perfume Tabu – do original, o que se entranha por toda a parte – e está quase tudo a postos. Mais um gole de cerveja, ou de tinto, e uma espécie de cerimonial para dar início às festividades: juntam-se numa roda a cantar e a dançar, dão largas à alegria. Os Cardadores de Vale de Ílhavo voltaram a sair à rua em dia de Carnaval, ontem à tarde, cumprindo uma tradição de longa data. E, acima de tudo, fazendo a sua própria festa. 

“É dos anos em que temos mais cardadores na rua” – eram duas dezenas -, contava um dos responsáveis por este grupo de figuras carnavalescas da pequena localidade do município de Ílhavo. A sua origem perde-se no tempo – “finais do século XIX” dizem alguns, sem especificar –, mas a sua essência continua a ser a de sempre. Uma espécie de sociedade secreta masculina, com regras muito próprias e que gira à volta de rituais de iniciação dos rapazes da terra na vida da adulta. 

Um mês antes do Carnaval começam a reunir-se na “caserna”, cuja localização é secreta, para preparar a festa que se aproxima. “Não se podem levar telemóveis e a caserna nem electricidade tem; é iluminada com candeeiros a petróleo”, desvenda Francisco Pinho (mais conhecido por Xico Estoira), o mais velho do grupo. Já leva com 36 anos de vivência no grupo e, aos 53 anos, ainda tem energia para dar e vender, acompanhando as saídas do grupo para a rua: “Não me faltam forças para andar a saltar com a rapaziada nova”, destaca. 

Faça chuva ou sol, no domingo gordo e na terça-feira de Carnaval, os cardadores “invadem” as ruas da sua localidade. A caminhar, a correr ou aos saltos. Vão fixados num objectivo: “cardar” as raparigas. Uma brincadeira antiga e que estará relacionada com a carda da lã que outrora se fazia por ali. “Era preciso cardar as ovelhas e, para isso, usavam-se as cardas; nós só cardamos as raparigas”, relata o mais velho do grupo. “Ai tanta lã, ai tanta lã!”, ecoam, enquanto passam as cardas ao longo da silhueta das raparigas. Uma espécie de engate? “Não, é mesmo pura brincadeira”, garante um cardador. As moças já não estranham a abordagem, conhecem a tradição e até lhe acham alguma graça. Volta e meia, também “cardam” homens, mas aí é porque “são amigos e é para a brincadeira”.

Parte de um desfile ao estilo português

Há já alguns anos que os cardadores são parte integrante – e um dos grandes atractivos – de um desfile carnavalesco que se vai fazendo em Vale de Ílhavo. Perante o desaparecimento dos festejos de Carnaval da sede do concelho, Ílhavo, e aproveitando as fortes tradições da terra, houve uma associação de Vale de Ílhavo que decidiu começar a fazer a festa. “Sem samba, sem brasileirices, só com tradições portuguesas e genuínas”, realça João Torrão, presidente da Associação Cultural e Recreativa “Os Baldas”. 

Uma das imagens de marca do desfile (cuidado com esses tímpanos) é o grupo que faz ecoar os sons que arranca a cornos e búzios – chamam-se Tó-Có-Corno. Seguem-se vários grupos de foliões, meia dúzia de carros alegóricos e dois grupos de bombos – um corso, como não podia deixar de ser, pontuado por alguma sátira e muita brincadeira. E, claro está, os famosos cardadores. “Mas eles não têm regras. Entram no desfile quando querem e onde querem”, nota João Torrão. Sempre assim foi, com uma boa dose de liberdade (ou anarquia), e assim deverá continuar a ser nesta festa que não pára de crescer. “Já tivemos anos em que ultrapassámos as cinco mil pessoas na assistência “, garante o organizador. Ali, como nos restantes desfiles, tudo depende do tempo. Ontem, ajudou à festa, não obstante a presença quase constante de umas nuvens cinzentas. Amanhã, logo se vê. Mas se a chuva não cair com força, às 15h o corso carnavalesco (ingressos a 1,5 euros) volta a tomar conta do centro da localidade conhecida também por ser terra de padeiras. 

Já os cardadores prometem sair nem que seja debaixo de “tempestade”, anuncia Dani Oliveira, um dos chefes do grupo deste ano. A tradição é para cumprir e importa encerrar em grande todo o ritual que vêm cumprindo há cerca de um mês, na tal caserna. “A preparar as máscaras, a ensinar os mais novos, a comer e a beber”, revela Xico Estoira. Nesta espécie de sociedade secreta, quem manda são os rapazes solteiros. O líder tem de ser solteiro e estar há mais anos no grupo. 

De geração em geração ou sem apoio da família

Este ano, a liderança é bipartida. Dani Oliveira vai dividindo a responsabilidade com Michael Franco, de 25 anos, filho de um antigo cardador. “Há casos assim, em que passa de geração em geração”, relata Dani. Também há situações em que a decisão de entrar para os cardadores não colhe apoio familiar. “A minha avó não gostou muito; ela teve um filho que foi cardador e já sabia o que era ver alguém chegar a casa carregado”, testemunha Dani - por “carregado” entenda-se “sob o efeito do álcool”. 

Xico Estoira também teve de contrariar o pai para ir para os cardadores. “Ele não queria nenhum filho no grupo e foram os cinco”, relata. Mas o que fazem, afinal, os cardadores ao longo dos seus encontros de preparação do Carnaval. “Muita coisa, muita coisa...”, responde Michael Franco, sem especificar. 

E por mais que a brincadeira e a folia sejam a essência do grupo, há “muitas regras” que eles têm de cumprir e levar a sério, afiança Elisa Martins Alves, que colabora com a associação Progestur Cultura, Lisboa, que lançou a colecção de livros Rituais com máscara. Elisa escreveu o livro dedicado aos Cardadores de Vale de Ílhavo e anda novamente de volta deles no âmbito da tese de mestrado que está a desenvolver no ISCTE. “A tradição dos cardadores é das que se mantêm mais genuínas e fiéis em Portugal”, reforçava a investigadora que está por estes dias em Vale de Ílhavo, a acompanhar a vivência do grupo. 

A avaliar pela quantidade de elementos que o grupo continua a atrair, a continuidade da tradição parece assegurada. Não são tão conhecidos como os caretos (de Podence ou Lazarim), mas começam, cada vez mais, a ultrapassar as fronteiras da sua terra. Recentemente, em Janeiro, viajaram até Pernik, na Bulgária, para partipicar no Festival Surva, e são presença obrigatória no Festival Internacional da Mascára Ibérica (FIMI). E, sim, sempre carregados de perfume Tabu. 

Embora seja cada vez mais difícil encontrar este perfume, a tradição fala mais alto. “Dantes, ainda o conseguíamos mandar vir de Espanha. Agora, já tem de vir de Ingaterra”, conta Dani Oliveira. É esse odor que vai exalando das fitas das suas máscaras e, também, das fitas largas (igualmente de papel) que são cosidas à sua indumentária, na zona das costas. Cada máscara pode pesar cinco quilos, mas isso não é impedimento para que passem as tardes de domingo e terça-feira de Carnaval a correr e a saltar. “Enquanto houver força nas pernas, aguentamos”, testemunha Jorge Alves, cardador há 14 anos.

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