O bolo da rainha D. Amélia também já é um gelado

Foi criado para receber o casal real em visita à Ilha Terceira, no início do século XX. Hoje, o bolo Dona Amélia, com as suas especiarias e mel de cana, é emblemático da doçaria terceirense e juntou-se aos gelados da Quinta dos Açores, que acabam de chegar a Lisboa.

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Ana Maria Costa, doceira e estudiosa da doçaria dos Açores Nuno Ferreira Santos

Havia certamente muita coisa para pensar durante os preparativos da visita do rei D. Carlos e da rainha D. Amélia à ilha Terceira, nos Açores, em 1901. Mas a doçaria não seria uma questão menor, isso garantiu o grupo de senhoras encarregado desta tarefa. Era preciso fazer um bolo especial, “que fosse diferente e levasse especiarias, que tivesse um gosto exótico para agradar à rainha”, explica Ana Maria Costa, a doceira e proprietária da pastelaria O Forno, em Angra do Heroísmo.

“Fez-se o bolo com os ingredientes da terra, com a farinha de milho – onde é hoje o aeroporto das Lajes era chamado o celeiro da ilha, porque cultivava-se aí o milho –, mel de cana, manteiga das vaquinhas das nossas pastagens, introduziram-se as especiarias e deu um bolinho com um aspecto rústico e simples mas que a rainha apreciou muito.”

Nasceram assim os bolos Dona Amélia, que são uma das especialidades d’O Forno, e, na opinião de Ana Maria Costa, o doce mais característico da Terceira – e agora também um dos sabores dos gelados da Quinta dos Açores. Ana Maria tem-se dedicado ao estudo da doçaria local, recuperando receitas antigas e procurando descobrir as origens dos vários doces.

“Havia receituário manuscrito em casa dos meus pais e de uma madrinha minha. Há uma grande quantidade de receitas de bolos que são o símbolo da doçaria terceirense e que se faziam apenas nas casas", conta Ana Maria. "Mas como o meu pai tinha uma pastelaria, eu conhecia o gosto, o formato, o aspecto exterior de muitos desses bolos, apesar de nunca os ter feito. Pus mãos à obra e tentei fazer o que a receita dizia, sem substituir a manteiga por margarina nem reduzir o número de ovos. E tem sido um sucesso.”

O que torna o bolo Dona Amélia particular é o facto de contar, de alguma maneira, uma história da Terceira. Para além do milho, que se cultivava na ilha, o doce leva mel de cana e as tais especiarias. “Como a partir do século XVI as caravelas que vinham da Índia carregadas de especiarias e do Brasil com mel de cana aportavam em Angra para se abastecerem antes de seguirem para Lisboa, abundavam esses produtos nas casas da burguesia angrense”, conta Ana Maria.

A responsável pela produção dos gelados da Quinta dos Açores, Helga, uma das três filhas de Francisco Barcelos, o fundador do projecto, sabia que se queria um sabor típico da Terceira, o bolo Dona Amélia era incontornável. Depois, foi preciso apenas descobrir a melhor forma de o incorporar no gelado.

“Experimentámos coisas diferentes”, conta Helga. “Adicionámos pedaços do bolo a uma base [de leite e nata], tentámos fazer a receita do Dona Amélia no gelado, colocando directamente o mel de cana e a canela, mas ficava demasiado forte, e no final optámos por colocar os pedaços do próprio bolo, que é feito n’O Forno.”

Na montra d’O Forno, a estrela são os bolos Dona Amélia (há quem lhes chame queijadas, mas Ana Maria não concorda, por entender que as queijadas devem levar uma capa exterior), mas há muitos mais, dos caretas aos camafeus, dos feiticeiros aos africanos, passando por outro característico da ilha, o pudim conde da Praia.

Antes de nos despedirmos, Ana Maria vai ainda buscar um doce que não estava exposto: um alfenim, em forma de boneca, revelando toda a extraordinária arte de moldar o açúcar em pequenas esculturas, uma tradição que hoje parece sobreviver apenas nos Açores e em alguns pontos do Brasil, como o estado de Goiás.

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