Quem mata quem

O mais interessante é que a polémica acerca da música do Conan Osiris já estava contida dentro da música do Conan Osíris.

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Nuno Ferreira Santos

No outro dia uma amiga, a tradutora Joana Cabral, falava-me do seu fascínio pelo capítulo que Victor Hugo deixou de fora na primeira edição da Notre-Dame de Paris. Ali no meio das histórias do corcunda Quasimodo e da cigana Esmeralda, Victor Hugo tinha deixado um diálogo entre um alquimista e um médico em que o primeiro, que era também o arquidiácono da grande catedral parisiense, apontava para um livro primeiro, e para uma torre da catedral depois, e dizia: “isto matará aquilo”.

Esse capítulo, que se chama precisamente “ceci tuera cela” — isto matará aquilo — é um ensaio dentro do romance explicando a acusação do arquidiácono alquimista. Ou seja, uma teoria de como a imprensa matará a arquitetura, quando vistas as coisas pelos olhos de alguém para quem a imprensa é uma coisa nova. Para nós tal ideia não pode deixar de ser estranha: hoje há livros impressos, e há arquitetura. Há livros impressos sobre arquitetura. Há arquitetura para livros impressos — bibliotecas, uma das formas mais antigas da arquitetura. Nada matou nada. A arquitetura sobrevive em livros impressos, e os livros impressos sobrevivem dentro da arquitetura. Não é fácil concluir que o arquidiácono alquimista, cujo nome era Claude Frollo, era apenas um daqueles seres hiper-ansiosos com medo do futuro e da tecnologia?

E, no entanto, Claude Frollo tinha razão. Os livros impressos não mataram a arquitetura, mas mataram uma das características principais da arquitectura na Idade Média: contar histórias. As catedrais medievais são diferentes de todas as que se fizeram depois porque elas não eram apenas um edifício: eram uma maneira de relembrar aos que as visitavam as crenças e lendas que os formavam. Hoje é-nos difícil “ler” uma igreja românica, mas uma vez tentei. Foi no Minho, em São Salvador de Bravães. Eu tinha de fazer um trabalho para a faculdade sobre aquela igrejinha à beira do rio Lima, e meti-me num autocarro para o Norte, tirei uma tenda da mochila, montei-a ao lado da igreja que ali está há novecentos anos e ali me deixei estar duas noites e três dias a andar sozinho e em silêncio à volta daquele pequeno templo e dos seus três pórticos, duas pinturas renascentistas já tardias, e uma inscrição quase indecifrável que alguém lhe terá feito na sua lateral virada a Sul. Passou tempo. Muito tempo. E finalmente a igreja de São Salvador de Bravães começou a falar comigo, a desdobrar as suas histórias: num capitel estava Daniel na Cova dos Leões; nas arquitraves os apóstolos olhavam-se entre si; havia macacos, serpentes, talvez dragões; num pórtico uma cruz prolongava-se até parecer uma mandala.

Aquela igreja que para mim era difícil ler — ao passo que me seria fácil ler livros sobre ela — era fácil de ler para quem há novecentos anos vivia ao lado dela, ou para quem ali passava a caminho de Santiago de Compostela, uns e outros maioritariamente analfabetos. Nesse sentido, sim, aquilo foi morto por isto. Isto mesmo, o impresso que tem em mãos neste momento. Tal como Sócrates já acusava a escrita de poder vir a matar a memória oral. E por isso o “ceci tuera cela” que foi incluído por Victor Hugo a partir da edição seguinte do seu romance foi recuperado por muitos autores e pensadores a partir daí de cada vez que uma tecnologia ameaçava matar outra. A rádio contra a imprensa: isto matará aquilo. A televisão contra a rádio: isto matará aquilo. O telemóvel contra a televisão: isto matará aquilo. Sempre errado, é claro. Mas sempre de certa forma certo, de alguma maneira menos evidente.

Talvez tenha sido a este ponto na conversa que disse à minha amiga: vai ver o Conan Osiris no Festival da Canção. Sim, disse eu, está toda a gente a falar disso. Ela não tinha ouvido falar, estava a meio de traduzir as oitocentas páginas do Notre-Dame de Paris como uma sacerdotisa da religião do livro no tempo das redes sociais. Tive de lhe explicar: metade das pessoas nas redes sociais diz que aquilo é horrível e que detesta e que não é música, metade das pessoas diz que aquilo é inesperado e admirável precisamente porque é música que ninguém se lembraria de ter feito antes.

Mas o mais interessante, tentei dizer eu, é que a polémica acerca da música do Conan Osiris já estava contida dentro da música do Conan Osiris, como se ela fosse uma profecia em espelho acerca da forma como seria recebida. Para quem ainda não viu ou ouviu, a música chama-se Telemóveis (e ganhou o Festival da Canção este fim de semana). Tem um refrão — não é bem um refrão, mas para simplificar — que não anda muito longe do “ceci tuera cela”. É uma pergunta: “Quem mata quem? Quem mata quem?”. E uma resposta: “nem eu sei” — porque a pergunta é acerca de se é a saudade que me mata ou se quem mata a saudade sou eu. Ao mesmo tempo, a música é sobre tecnologia, ou melhor, sobre os telemóveis do título como instrumentos para, entre coisas, matar saudades, e sobre a relação de amor-ódio que estabelecemos com estas ferramentas (em que provavelmente, mais do que num jornal impresso, o leitor está a ler estas palavras). O cantor, compositor e letrista fantasia sobre esmagar e escangalhar o telemóvel, suspeitando nós que nunca conseguirá definitivamente fazê-lo. E fá-lo sobre um fundo sonoro de música tradicional de várias partes do mundo, onde se nota sobretudo um gamelão indonésio, por cima do qual estende a sua voz de fado — uma mistura de tempos e espaços como a do seu próprio nome de personagem de animação japonesa e divindade egípcia.

Já na sua primeira música em português, chamada Amalia, Conan Osiris pusera um verso que é precisamente sobre a mesma angústia de querermos sempre ser novos sem deixarmos de ser os mesmos: “sabes que a saudade anda aos beijos com a morte”. É uma angústia portuguesa, sim. É uma angústia de todos os humanos em todos os lados, ver a cultura a mudar e a matar-nos aos poucos, o que é o mesmo que dizer: a renascer-nos aos poucos.

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