Quando os cómicos assaltam o poder

A acreditar nas últimas sondagens na Ucrânia, o cómico e estrela da televisão Volodimir Zelensky, de 41 anos, poderá suceder a Petro Poroshenko na presidência nas próximas eleições de 31 de Março.

Há quem diga que a política sempre foi uma representação, um teatro, uma comédia. Nos últimos tempos, multiplicam-se os casos mais improváveis que parecem confirmar essa constatação – a começar pelo animador do reality show televisivo The Apprentice que chegou à presidência dos Estados Unidos. Mas cómicos, cómicos mesmo de origem, podemos assinalar o criador do movimento 5 Estrelas, Beppe Grillo, que entretanto cedeu a Luigi di Maio a liderança formal do partido mais votado nas últimas legislativas italianas. Ou Jimmy Morales, Presidente da Guatemala desde 2016 depois de ter conquistado a popularidade como comediante na televisão guatemalteca, embora o seu estado de graça se tenha dissipado abruptamente por causa dos escândalos financeiros e sexuais em que apareceu envolvido.

Agora, a tendência é retomada no país do Leste europeu que esteve na origem do mais grave conflito entre a Rússia, a Europa e os Estados Unidos desde o fim da Guerra Fria. Com efeito, a acreditar nas últimas sondagens, o cómico e estrela da televisão Volodimir Zelensky, de 41 anos, poderá suceder a Petro Poroshenko na presidência da Ucrânia nas próximas eleições de 31 de Março. A vantagem de Zelensky sobre Poroshenko é de oito pontos, o que os observadores explicam pela impopularidade crescente e as suspeitas de corrupção – uma pecha já tradicional dos políticos ucranianos – que afectam o actual Presidente.

Mas o que torna Zelensky um verdadeiro caso de estudo no contexto dos movimentos populistas em erupção na Europa e no mundo é a forma como a ficção ofusca literalmente a realidade ou constitui com ela, como num sistema de espelhos, uma realidade paralela. Assim, o nome da série televisiva que fez de Zelensky um fenómeno de popularidade seguido por milhões de espectadores, Servo do Povo, é o mesmo do partido com que se apresenta às eleições. Além disso, a personagem principal desse show chama-se Vasyl Holoborodko, um professor liceal que chega involuntariamente a Presidente por causa de um grito de revolta lançado nas aulas contra a corrupção endémica no país.

Zelensky ou Holoborodko? Aparentemente, pouco importa: personagem e actor são uma e a mesma pessoa aos olhos dos ucranianos desencantados. A terceira temporada da série será difundida ao longo deste mês, antecipando o escrutínio do dia 31, e os cartazes e clips da campanha misturam-se com imagens da série (não falta sequer uma simulação de voto nas redes sociais para designar os futuros ministros de Zelensky/Holoborodko). Além disso, o cómico candidato a Presidente desenvolve a sua ficção numa cadeia televisiva de um oligarca de reputação duvidosa – e o próprio Zelensky é conhecido por deter negócios na Rússia e sociedades muito lucrativas geridas através de companhias offshore sedeadas em Chipre.

É difícil imaginar um enredo mais revelador das actuais tendências populistas, confundindo ficção e realidade, cultivando as fake news e os discursos centrados sobre a corrupção alheia mas omitindo a própria (como foi/é o caso do guatemalteco Morales actualmente em desgraça). Finalmente, não é preciso ser cómico para vestir a respectiva pele. Não faltam exemplos disso, desde o grotesco amadorismo diplomático de Trump na sua cimeira com o ditador norte-coreano – confiando em que a "magia" da sua relação pessoal com Kim Jong-un operaria milagres, enquanto o seu ex-advogado Cohen lavava a roupa suja no Congresso –, até ao italiano Salvini, disputando a Di Maio a palma do cómico Grillo, para ficcionar como se pode conduzir a Europa rumo ao desastre. E isto sem falar, sequer, nos sonâmbulos de um "Brexit" ficcionado mas assustadoramente real.

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