Rural

Os que fazem uso de sofisticadas racionalidades para pensar que deixem o mundo rural descansar e que inventem outras palavras. O mundo rural já durou demasiado tempo e muita fome.

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Álvaro Domingues

Como chove, Cacilda!
Como vem aí o Inverno, Cacilda!
Como tu estás, Cacilda!

Da janela da choça o verde é um prato
Que deve ser lavado, Cacilda!
E o boi, Cacilda!
E o ancinho, Cacilda!
E o arroz, a batata, o agrião, Cacilda!
Já cozeste? (1)

Do surrealismo disse André Breton que era um puro automatismo psíquico, ditado do pensamento na ausência de qualquer controlo exercido pela razão, fora de toda a preocupação estética e moral. Disse mais que era da omnipotência do sonho que brota essa realidade superior, capaz de realizar associações de sentido que não ocorrem pelo embotamento gerado pelo excesso de realismo que há na realidade. Peremptoriamente, profetizou que o surrealismo tende a demolir outros mecanismos psíquicos, substituindo-os na resolução dos principais problemas da vida. Está tudo no manifesto que publicou em 1924. Cada vez está mais actual.

Na arte mágica do surrealismo pensa-se e escreve-se depressa. Cada frase traz consigo um impulso urgente para continuar. Sempre que haja risco de intromissão de alguma daquelas racionalidades já completamente construídas e encerradas, corta-se essa parte do texto e continua-se com uma palavra começada, por exemplo, por b ou por v. Se isso acontecer a alguém retintamente do Porto, é indiferente, e assim se poderá exclamar: eis um voi por baixo de um biaduto gigantesco!, ou então, mais detalhado, eis um boi por vaixo de um biaduto descomunal sobre um vale cheio de berdura e arboredos. Expressões como, por exemplo, chove, podem ter as conotações ou as intenções que se quiser. Cesariny sabia. Sabia também que, como num romance, o nome do personagem é apenas uma palavra que se distingue das outras por começar por uma letra maiúscula: Cacilda, a mulher que vive na choça, por exemplo. O surrealismo, diz Breton, é um sentimento desencaminhado; a sua fauna e flora são inconfessáveis, o boi pode ganhar asas e voar como Pégaso; existem peixes solúveis (com vida breve, pois). Breton, nativo de Peixes, afirma ser solúvel no seu pensamento e aí sentir-se à vontade como peixe na água (deduz-se). Como isto fazia bem a certas mentes petrificadas.

Lido novamente o poema de Cesariny, está quase tudo dito: os que fazem uso de sofisticadas racionalidades para pensar que deixem o mundo rural descansar e que inventem outras palavras. O mundo rural já durou demasiado tempo e muita fome. Se não fossem uns personagens como o velho Virgílio e as suas éclogas, os faunos com pés de cabra, os pastores (sempre com flautas na mão…), os rebanhos, os lugares amenos, os ribeiros, os amores, as ninfas; se não fossem os românticos e seus sucedâneos a fazerem desse mundo um paraíso perdido, um drama adocicado entre a boçalidade pura, a inocência, a proverbial sabedoria, a bebedeira crónica, as comadres, missinhas, o andar submisso ou os crimes hediondos, etc., não havia tanta pastosidade discursiva sobre o tema. Era apenas uma vida dura, trabalhar para comer, negociar boas colheitas com os deuses e trovoadas serenas, cantar na igreja e nas romarias e nunca perdoar a uma toupeira ou a um bando de estorninhos por danos irreparáveis à horta ou ao milho; no resto, viver, imaginar coisas, amar, sofrer, moer pensamentos e toda essa lista de atributos da humana condição. Pouco verniz, alguma fome e um certo desconforto. Fosse o que fosse, não foram os camponeses que fizeram livros, fotografias ou filmes sobre a sua condição – inventaram-nos. Não se auto-etnografaram, eram a parte do povo e da pátria que servia como armário para guardar e expor valores profundos da identidade nacional, depois de esgotados os mitos históricos, os heróis, as navegações e os feitos valerosos.

Depois veio o realismo e o neo-realismo. A coisa levou um abanão e bastante carga política. Precisava. Afinal, na longa história dos humanos, houve mais camponeses que outra coisa. Foi sobre a outra coisa que se escreveu abundantemente.

Só na viagem para o fim é que o mundo rural apareceu fulgurante. Freud (os surrealistas estimavam-no de sobremaneira) dizia que nestes casos esse prodígio era para resolver o trauma da perda e o mau luto por alguém que desaparece e, ausente, se torna mais presente em forma de fantasmagoria.

Mesmo que aquele boi pouco ou nada signifique na contabilidade económica, na riqueza que gera, no emprego que cria, no lucro que dá; mesmo que aquelas ervas sejam uma levíssima memória do que outrora foi um pasto ou um campo de erva; mesmo que as árvores alinhadas sejam apenas o que resta de uma vinha de enforcado; mesmo que os pinheiros e os eucaliptos lá ao fundo tenham menos valor do que o que se gasta em pô-los à porta do madeireiro; mesmo que sobre este vale se atravesse uma gigantesca obra d’arte vinda do manifesto futurista de Marinetti…, para ser rural — pensa-se —, basta a erva, as árvores, o verde, a clorofila e, claro, o boi, Cacilda! e o ancinho, Cacilda!, a batata, o agrião, Cacilda! Já cozeste?

É assim o rural. Resistente. Quando morto, ressuscita ao primeiro dia. Por isso é surrealista, uma geografia desencaminhada por excesso de nostalgia.

 

1. Mário Cesariny (1959), Rural in Nobilíssima Visão, Lisboa, Guimarães (Ed. 1976, p.54).

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