Argelinos tomam as ruas para impedir recandidatura do “Presidente-múmia”

Bouteflika raramente aparece em público. O limite dos argelinos, que em geral temem contestação por receio de violência, foi ultrapassado. O prazo para apresentar candidaturas às presidenciais de Abril termina este domingo.

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Durante toda a semana que passou, houve protestos na rua contra a quinta recandidatura de Bouteflika MOHAMED MESSARA/EPA
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Este domingo termina o prazo para apresentar candidaturas às eleições de 18 de Abril Charles Platiau/REUTERS
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AS manifestações de sexta-feira em Argel e Oran foram as maiores da semana MOHAMED MESSARA/EPA
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Houve confrontos com a polícia na sexta-feira em Argel Zohra Bensemra/REUTERS
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Advogados também fizeram um protesto contra a recandidatura, dizendo "estar com o povo e a Constituição" MOHAMED MESSARA/EPA

Um “fantasma”, uma “múmia”, uma imagem num cartaz, um homem que não anda, não fala em público há seis anos, que, na verdade, “nem sequer se sabe se ainda está vivo”: o Presidente da Argélia, Abdelaziz Bouteflika, é apesar de tudo isto, candidato a um quinto mandato.

Quando foi anunciada esta candidatura a 22 de Fevereiro, algo aconteceu. O país, que estava num estado de despolitização por medo, teve um “assomo de dignidade” espontânea contra a “farsa”, como descreve o diário francês Libération. Milhares de pessoas saíram à rua contra o quinto mandato do que chamam o “Presidente múmia”, e esta sexta-feira voltaram a sair, em grandes manifestações em Argel e Oran, onde houve 183 feridos. Pressionam para que a candidatura de Bouteflika às eleições de 18 de Abril não seja submetida - o prazo para o fazer termina neste domingo, um dia depois de o Presidente completar 82 anos.

Bouteflika, que sofreu um AVC em 2013 e não fala em público desde 2014, aparecendo silencioso apenas uma meia dúzia de vezes nos últimos anos, explicou a sua candidatura numa mensagem escrita à nação. “Claro que já não tenho a mesma força física que tinha antes, mas tenho a vontade inabalável de servir o país que nunca me abandonou, o que me permite transcender constrangimentos ligados a problemas de saúde que podem acontecer a qualquer um”.

O extremo da situação poderia ser matéria de comédia: um presidente que está presente em forma de fotografia nas cerimónias oficiais. Que na cerimónia da independência em Novembro apareceu em carne e osso, mas amarrado à sua cadeira de rodas para não cair. Cuja voz não é ouvida há seis anos. Mas de quem se diz que “é o único capaz de assegurar a alternância entre gerações” (como alegou o seu director de campanha, Abdelmalek Sellal, citado pelo Libération).

Realmente, como comenta o editorial do Libération, o que melhor pode representar a estabilidade do que um Presidente que não se consegue mexer? O que pode melhor representar o sangue frio do que um Presidente que não consegue reagir? Mas o potencial de comédia muda pela seriedade da situação.

O fim da “década negra"

O que mudou para os argelinos? A geração mais velha tem admiração por Bouteflika porque este representa o fim da “década negra”, em que a guerra civil, entre o Governo e vários grupos islamistas de 1992 a 2002 deixou entre 100 e 200 mil mortos e ainda 20 mil desaparecidos.

A falta de contestação ao regime não se deve apenas ao medo da violência e do caos, mas também aos investimentos que a exportação de hidrocarbonetos permitia: A Argélia evitou grandes contestações na altura das Primaveras Árabes baixando os preços de alguns bens. Mas a baixa dos preços do petróleo a partir de 2014 também significa que há menos verbas para gastar.

E em editorial o diário Le Monde diz que a candidatura de Bouteflika foi a centelha que acendeu um rastilho de anos e anos de má governação.

Não votar numa cadeira vazia

Para Karima Dirèche, historiadora entrevistada pelo diário Le Monde, a mobilização contra o quinto mandato de Bouteflika foi surpreendente: “Poucos anteciparam o movimento”, disse. Oregime usou, durante décadas, o medo da instabilidade e do caos, e da violência, “para negar todo o reportório de acção e veleidade de mobilização colectiva”.

Mas os jovens com menos de 25 anos são hoje quase metade da população (45%). Não viveram a ameaça do islamismo radical nem a violência da guerra civil, só conheceram um único Presidente, Bouteflika, que não vêem como alguém capaz de modernizar o país, e querem ter hipóteses de futuro (o desemprego jovem é de 30%). E não percebem porque é que o “preço da estabilidade política” há-de ser um regime liderado por “um homem que nem sequer se sabe se está vivo”, diz a historiadora.

“O regime sobrestimou a paciência do povo argelino”, considera Karima Dirèche, mas este não resistiu à “humilhação deste ritual surrealista”. Os manifestantes decidiram que “não irão votar numa cadeira vazia”.

O “não ao quinto mandato” é o principal slogan dos protestos, que levaram dezenas de milhares de pessoas às ruas da capital, Argel, e várias outras cidades, intercalado com cantos de “adeus Bouteflika”, “pacíficos”, ou “o povo rejeita Bouteflika e Said”, uma referência ao irmão do Presidente doente, conta o diário britânico The Guardian.

“Não sabemos quem é que realmente está a gerir o país”, disse ao Financial Times Ahmed, que trabalha num hospital em Argel. “Não temos pResidente. Temos uma foto”, dizia um cartaz de um manifestante, conta o diário francês Le Monde.

Aos manifestantes pouco importa a explicação dos analistas: que Bouteflika será o candidato porque as diferentes facções das forças do regime, que é sustentado por uma cuidada rede de clientelismo, não conseguiram unir-se em tornou de um outro candidato.

Pouco lhes importa o que possa acontecer a seguir: “Na minha opinião, a resposta agora não interessa”, escreveu o jornalista, tradutor e poeta Salah Badis, num artigo publicado no Libération em que conta como viu, na primeira vez na vida, uma manifestação política e como os jovens que a fizeram “quebraram a barreira do medo”. Para Badis, “o que importa realmente é que o domínio das possibilidades aumentou hoje na Argélia”.

Que alternativa?

Até agora a polícia reagiu com quase indiferença na primeira manifestação mas a partir da segunda já começou a usar gás lacrimogéneo e a fazer detenções. Alguns dos detidos foram jornalistas, num protesto próprio em que pediam que os media estatais cobrissem as manifestações.

Mas ainda assim, tem havido uma relativa benevolência das autoridades, conhecidas por repressões esporádicas mas duras – e isto pode mudar. Tanto o regime como os seus opositores aguardam os desenvolvimentos. Até agora, para o diário da oposição El Watan, o regime “não tem mostrado sinais de pânico, muito menos de abertura”.

Mas se a resposta do regime continuar a ser a candidatura de Bouteflika, as manifestações vão pedir a saída de todo o sistema político, para ser substituído por uma nova ordem democrática”.

Mas este desconhecido é visto com muita desconfiança. Alguns franco-argelinos ou argelinos a viver em França diziam ao diário Le Monde que “não queriam uma Primavera árabe” no seu país, como a franco-argelina Sabrina, 30 anos, em Paris.

“Não sou apoiante de Bouteflika, mas não quero manifestações, mesmo se forem pacíficas”, disse. “As coisas começam assim e depois degeneram.” Já Yamina, 67 anos, questionava qual seria a alternativa: “Claro que ficamos felizes ao ver a revolta da juventude. Mas quando se pensa bem nisso, vê-se que ninguém tem um verdadeiro projecto”, disse a mulher de 67 anos. “Quem irá substituir Bouteflika?”

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