Das vacas loucas às vacas doentes da Polónia

Mercado está mais transparente mas para as organizações de direitos dos consumidores, o princípio da transparência deve estender-se a outros aspectos, desde a comunicação de incidentes à rotulagem

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A doença das vacas loucas custou 224 vidas e 6,9 mil milhões de euros, entre 1996 e 2011, e expôs as fragilidades de então do sistema de segurança alimentar JEFF MITCHELL/Reuters

Conciliar a protecção da saúde humana e o interesse dos consumidores com o funcionamento eficaz do mercado interno tem sido o objectivo central da legislação alimentar europeia, criada em 2002, na sequência dos efeitos devastadores da crise da encefalopatia espongiforme bovina (BSE). A doença das vacas loucas teve consequências quer na saúde humana (224 pessoas foram infectadas entre 1996 e 2011), quer no mercado (só os custos suportados pelo orçamento europeu para conter a crise ascenderam a 6,9 mil milhões de euros) e expôs as enormes fragilidades do sistema de segurança alimentar instalado.

A legislação alimentar que se seguiu vigora até hoje: passou a haver definições e regras comuns e foi instaurado um sistema de rastreabilidade em toda a cadeia alimentar, da exploração agrícola até à mesa, para que, em situações de crise, seja possível chegar rapidamente à origem do problema. Foi nessa altura, também, que foi criada a EFSA, justamente para dar uma base científica sólida às decisões de Bruxelas. Esta é a primeira vez que a legislação é revista.

E se não há dúvida que as coisas melhoraram desde então, para as organizações de defesa dos direitos dos consumidores, há ainda muito a fazer para tornar o mercado mais transparente.

A contenção de crises alimentares, por exemplo, tem beneficiado do regime de rastreabilidade europeu e da troca de informação mais eficiente entre Estados-membros através do sistema de alerta rápido, o RASFF. A última grande crise de dimensão pan-europeia remonta a 2011, quando o surto de E.coli em rebentos vegetais, que eclodiu na Alemanha, foi responsável por 55 mortes e cerca de 900 casos confirmados. Contudo, vários casos recentes – como o do leite em pó para bebé contaminado com Salmonella em 2018 ou o dos ovos contaminados com pesticida em 2017 – que obrigaram à retirada de milhões de produtos do mercado em dezenas de países europeus, têm minado a confiança de muitos consumidores na segurança dos alimentos que consomem e na capacidade de as autoridades reagirem em tempo útil quando algo falha.

Certo é que não há risco zero num mercado que abrange 28 países e que emprega 24 milhões de pessoas desde a produção agrícola ao retalho. Só a indústria de alimentação em bebidas da União Europeia abrange cerca de 288 mil empresas e 4,25 milhões de trabalhadores, para além de representar um volume de negócios anual superior a 1090 mil milhões de euros.

O que está em causa, defende a Foodwatch, é a capacidade de conter estes episódios antes de eles assumirem proporções gigantescas. “O problema dos escândalos alimentares recentes é que começaram pequenos e tornaram-se cada vez maiores”, diz Thilo Bode, director da organização. Por isso, defende, “a rastreabilidade tem de ser efectivamente aplicada”, não só para chegar imediatamente à fonte no caso de incidentes, mas também para informar o público da origem dos produtos.

Foi o facto de esse princípio existir que permitiu à ASAE, no final de Janeiro, quando foi notificada, através do sistema de alerta rápido, que tinha sido exportada a partir da Polónia carne de vacas doentes para dez países europeus, incluindo Portugal, detectar rapidamente onde estavam os lotes de carne potencialmente contaminados e neutralizar a ameaça antes de chegar às prateleiras. “Exemplos desse tipo devem dar maior segurança ao consumidor”, observa Dulce Ricardo. Até porque a evolução foi “muito grande: “o sistema de rastreabilidade está melhor implementado”, assegura, e “nos casos registados tem-se conseguido chegar à fonte”.

Nem sempre é assim. Quando no Verão de 2017, foi detectada a presença de um pesticida tóxico para consumo humano em ovos, estes já tinham sido exportados para 45 países. O que falhou? As autoridades holandesas lançaram uma investigação mal foi confirmada a presença da substância perigosa e ilegal na cadeia, mas não travaram imediatamente a ameaça, nem informaram adequadamente os consumidores. “Não sabiam exactamente para onde o produto tinha sido vendido, por isso não foi possível travar isto de forma eficaz”, explica Thilo Bode.  

O problema aqui é de implementação por parte dos Estados-membros, porque “a lei é absolutamente clara” e obriga todos os elementos da cadeia a saber quem são os seus fornecedores e compradores direitos. Por outro lado, diz o diretor da Foodwatch, as organizações de defesa de direitos dos consumidores “não têm oportunidade de levar os governos a tribunal” quando sucedem estes casos, outra reivindicação da organização.

A própria Comissão admite, no relatório de avaliação da legislação alimentar, que os Estados-membros não actuam com a mesma eficácia ou os mesmos critérios, no que respeita à retirada produtos do mercado, à realização de controlos de segurança, à informação dada ao público em geral quando ocorrem incidentes ou às penalizações aplicáveis quando há violações da lei.

Em Portugal, a DECO faz uma avaliação positiva do trabalho da ASAE. “Em termos de segurança alimentar, a situação em Portugal tem melhorado”, salienta Dulce Ricardo. “Pontualmente, existem problemas, mas são mais facilmente e mais rapidamente detectáveis do que acontecia há alguns anos”, justifica. Ainda assim, realça, “a fiscalização tem de ser intensificada, se não, não encontrávamos os problemas que vamos encontrando”.

Ainda este mês, a associação voltou a detectar a presença de sulfitos em carne picada (cuja utilização é proibida), tendo chumbado 15 de 20 talhos avaliados. Isto depois de, dois meses antes, a ASAE ter publicado os resultados de uma campanha semelhante com resultados opostos: em 25 amostras de outros tantos talhos, apenas 5 acusaram presença de sulfitos e 19 passaram no teste.

Alertas mais específicos

Quer para a Foodwatch, quer para a DECO, uma das formas mais imediatas de proteger os consumidores e a saúde pública, em caso de incidentes, é a divulgação aos consumidores de informação específica sobre as marcas, os lotes e os produtos envolvidos.

As notificações do sistema de alerta rápido – que permite aos Estados-membros partilhar informação quando são detectadas falhas potencialmente perigosas para a saúde pública – estão disponíveis num portal público, mas referem apenas o tipo de produto (por exemplo, carne bovina) e o país de origem. “Se o nome do produto não é divulgado, o consumidor não se pode defender a si e à sua saúde”, argumenta Thilo Bode. “É uma violação flagrante dos direitos dos consumidores”, diz. “Temos pedido muitas vezes que haja uma maior transparência nesse sentido”, concorda Dulce Ricardo, para que o consumidor “possa parar de imediato” o consumo.

Em casos de fraude – como a que, em 2013, envolveu a comercialização de carne de cavalo como vaca –, a divulgação de informação aos consumidores nem sequer é obrigatória. “Isso também precisa de mudar”, argumenta Thilo Bode. Para este responsável, trata-se de definir prioridades. “Se queremos um mercado em que o consumidor é soberano, temos de lhe dar informação para o proteger de problemas de saúde e de fraudes. Isto é absolutamente necessário”, defende. Até porque não é possível haver um fiscal em cada esquina e a forma mais simples de reforçar a segurança alimentar no mercado interno sem sobrecarregar de burocracia o sistema é melhorar a transparência: “a transparência é uma condição fundamental para o funcionamento de uma economia de mercado”, defende.

Rótulos enganadores

As organizações de defesa dos consumidores criticam também a informação contida nos rótulos dos produtos que nem sempre permitem ao consumidor tomar uma decisão rápida e informada, e, por vezes, veiculam mesmo dados enganadores. “Os rótulos dos produtos não nos informam sobre a sua qualidade”, sintetiza Thilo Bode.

Segundo a lei, cada produto tem de apresentar uma declaração nutricional, onde estão patentes dados sobre o seu conteúdo energético, de sal ou de açúcar, entre outros, mas para a DECO, era fundamental que esta declaração viesse acompanhada de elementos visuais (um semáforo nutricional) que ajudassem os consumidores a interpretar se os níveis de açúcar ou de sal em cada produto são ou não elevados.

Por outro lado, apesar de qualquer alegação de saúde que as marcas colocam nos rótulos ter de ser aprovada a nível europeu pela EFSA e de ter uma base científica, esta análise não tem em conta a declaração nutricional do produto. Ou seja, é verdade que hoje esta questão está mais regulamentada – “antigamente os produtos faziam bem a tudo e mais alguma coisa”, recorda Dulce Ricardo –, mas “ainda falta fazer esse casamento”.

Isto significa, na prática, que um produto pode conter elevados níveis de gordura, de sal e açúcar, mas ostentar na embalagem a mensagem “ajuda a proteger contra a gripe” por integrar uma ínfima quantidade de vitamina C na sua composição. “As declarações de saúde só devem ser colocadas em produtos que são saudáveis”, resume Thilo Bode.

Esta questão é ainda mais relevante se olharmos para o impacto na saúde dos europeus da implementação da legislação alimentar que vigora desde 2002. Se a segurança alimentar foi melhorada – veja-se por exemplo, a tendência consistente de redução do número de casos de infecção por Salmonella na última década e meia –, as questões de nutrição têm sido totalmente descuradas. Os problemas de peso e obesidade estão a aumentar “a um ritmo acelerado na maioria dos Estados-membros”, sublinha o relatório da Comissão. Um rótulo claro e compreensível pode fazer toda a diferença.

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