Três armadilhas da moda que a esquerda deve evitar

Se há facto impressionante, embora pouco reportado ou analisado, é que o fascínio por essa retórica nacional-populista contaminou também a esquerda.

Na política como na arte ou na cultura, há coisas que saem de moda e que voltam a entrar. Nem todas são necessariamente boas. Os últimos anos políticos, na Europa como no mundo, foram marcados pelo regresso da retórica nacional-populista. E se há facto impressionante, embora pouco reportado ou analisado, na política europeia como muito em particular na portuguesa, é que o fascínio por essa retórica nacional-populista contaminou também a esquerda. Não faltam exemplos nem razões para esse fascínio, mas vamos diretamente ao assunto: esse fascínio é um fascínio perigoso, e atirará a política para os braços da direita e da extrema-direita, como já vemos em alguns países do mundo. Para que isso não aconteça, a esquerda (incluindo a portuguesa) deve evitar as armadilhas que descrevo a seguir — e que infelizmente vejo serem menorizadas ou os seus perigos relativizados.

A primeira armadilha é o fascínio por executivos fortes e pouco limitados, fascínio típico do populista. Para os populistas não há problemas complexos, só há governos fracos. Quanto menos entendem os problemas, mais fortes querem os governos. A armadilha aqui é, evidentemente, que a direita ou mesmo a extrema-direita terão todo o prazer em recuperar a defesa dos governos fortes e sem limitações para exercer o poder à sua maneira. Um exemplo: eu posso não ser um grande purista da independência dos bancos centrais, que acho sacralizada em demasia, mas sou um purista da independência do Instituto Nacional de Estatística, ou da Comissão Nacional de Proteção de Dados, ou da rádio e televisões públicas, ou das instituições culturais e educacionais, ou de uma pletora de outras agências e instituições nas quais quero que o governo não meta as mãos. A esquerda que hoje adota a retórica do fascínio pelos executivos pouco ou nada limitados, que supostamente exprimem com unitária eficácia a vontade popular, há de queixar-se amanhã da direita que substitui os diretores destas instituições (e às vezes os mete na prisão) e procede a pilhar os dados pessoais dos cidadãos, a falsear estatísticas ou a mudar os programas escolares ou os conteúdos das emissões televisivas diretamente. Grave erro, que já está a ter maus resultados: tornar a nossa democracia mais populista torna-a inevitavelmente menos cívica e, portanto, menos democrática.

A segunda armadilha é a redução do “nós”. Começou, por exemplo, na esquerda francesa, de Sapir a Mélenchon: ou porque “o estado social precisa de populações estáveis e, portanto, de reforçar as fronteiras” ou porque “os trabalhadores destacados estrangeiros são explorados pelos patrões do seu país e do nosso”, uma certa esquerda descurou a defesa daquilo que efetivamente resolve estes problemas (redistribuição, subida do salário mínimo, fiscalização das condições de trabalho, alteração da legislação aplicável em contexto de liberdade de circulação) para se concentrar numa versão de “os nossos primeiro”. Claro que nos dirão que esses “nossos” não têm distinção de cor, etnia ou religião, e que o seu nacionalismo será sempre republicano. Aquilo que se esquecem de prever é que a seguir as maiorias mudam, e a porta da retórica já está aberta para a versão excludente, racista, xenófoba dos “nossos primeiro” da extrema-direita e da direita logo atrás desta. A esquerda não deve cair neste erro e, pelo contrário, deve voltar à sua posição original de salientar sempre aquilo que aproxima os humanos para lá de fronteiras. Os problemas dos humanos comuns são comuns a nós todos e a precisar de soluções comuns: uma velha posição que tem a vantagem de ser mais realista e mais moral.

A terceira armadilha da moda é a compartimentalização do mundo. Procede das duas anteriores e da ideia de que a política internacional é um jogo de soma zero em que se eu ganho é porque tu perdes, e se tu estás a ganhar é porque eu estou a perder certamente. Na visão deste nacionalismo metodológico, que nem precisa sequer de ser um nacionalismo cultural, cada país é uma caixinha, a política nacional é a verdadeira política e a única a poder ser democrática, e o mundo fora da caixinha é só para a política internacional que assim se torna, na verdade, só política inter-governamental. Os defensores desta ideia desconfiam de qualquer inovação democrática na política da União Europeia, por exemplo, porque no fundo, para eles, só o governo nacional é que nos representa. Assim são contra a eleição do presidente da Comissão Europeia (e nem sequer apresentam candidato a ela), contra as listas transnacionais, desvalorizam os poderes que o Parlamento Europeu tem ganho aqui e ali nas revisões de tratados, etc. Mais uma vez, este é um pensamento de vistas curtas. Imaginemos que hoje o leitor concorda com a estratégia europeia deste governo e acha portanto que está tudo bem porque não precisa de ser representado na Europa por mais ninguém. Agora lembre-se como se sentia quando era representado por um Passos Coelho cuja estratégia era repetir o que dissesse a Alemanha. Se só o governo nacional o representar, no fundo ninguém o representará quando estiver na oposição. É por isso que a esquerda deve defender a democratização profunda da União Europeia e não a manutenção do status quo. Precisamos de eleger mais representantes (na Comissão, no Conselho da UE onde temos diplomatas a fazer de legisladores) e dar mais poderes de representação aos eleitos que já temos no Parlamento Europeu (nomeadamente, mas não só, através de um boletim de voto “europeu” ao lado do nacional).

No fundo estes três erros são o mesmo erro: a ideia de que em democracia basta à vontade popular eleger os tipos certos para fazer as coisas certas e tudo ficar bem. Mas a democracia é muito mais do que isso: é estado de direito e direitos fundamentais, é solidariedade com os direitos humanos dentro e fora de fronteiras, é construção de uma experiência de democracia à escala europeia, é limitar constitucionalmente os governos dentro de portas e ganhar espaço para a política dos cidadãos fora de portas. A esquerda que se esquecer disto arrepender-se-á amargamente do erro quando vir a direita no poder.

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