Juliana Huxtable: ir além do corpo para encontrar um novo humanismo

A escritora, DJ e artista interdisciplinar de Nova Iorque apresenta-se pela primeira vez em Portugal com Triptych, um concerto-performance à volta da ideia de desincorporação. Esta quinta-feira, em Serralves.

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Juliana Huxtable Juri Hiensch
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Para Juliana Huxtable, apanhar o metro de Nova Iorque é, na maioria das vezes, mais uma tarefa diária “básica, trivial e aborrecida”. Mas há excepções, como aquela noite em que teve um homem a segui-la e a ameaçá-la numa estação de metro. “De repente, um senhor mais velho, que percebeu o que se estava a passar, veio ter comigo, sentou-se ao meu lado na carruagem e ficou comigo até eu sair. Não dissemos nada um ao outro, mas ficou muito claro que aquilo foi uma expressão de amor”, recorda a artista americana. E isso, diz, “foi também uma experiência de como lidar com a desincorporação”, que acaba por ser o fio condutor de Triptych, o concerto-performance com que Juliana Huxtable (n.1987, Texas) se estreia em Portugal, esta quinta-feira às 22h no Auditório de Serralves, no Porto. Em palco estará acompanhada pela harpista, compositora, modelo e activista transgénero Ahya Simone, e pelo baterista, pianista e amigo de longa data Joe Heffernan.

“Pensei muito na ideia de desincorporação para este projecto”, diz a performer, DJ, escritora, activista LGBTI e, acima de tudo, artista interdisciplinar, que tem sido um dos nomes mais requisitados no circuito artístico de Nova Iorque, movendo-se entre os grandes museus, do New Museum ao MoMA PS1, e a cena de música de dança e de festas queer (co-criou, inclusive, uma das mais icónicas festas nesse departamento em Nova Iorque, a Shock Value). Este pensamento de ir além do corpo começou a ser estruturado com a performance que deu origem a Triptych, apresentada em 2016 em Glasgow. “A proposta era reflectir sobre liberdade, direitos humanos e a liberdade na arte. Mas, em vez de pensar o corpo como algo que deténs, que te faz ter direitos ou não, a ideia era encontrar possibilidades para pensar fora disso”, explica a autora. E aí voltamos à história do metro.

“Para mim, estar dentro dos transportes públicos, sob uma ameaça de violência, é o exemplo perfeito de como não podes usar o teu corpo como recurso. De certa forma, estás presa. Tens de pensar na tua existência de maneiras diferentes.” O que pode ser “através do medo”, sim, mas também por meio do “entusiasmo”, “do amor”, de “um sentimento de união extática com alguém”. A violência não tem de se sobrepor, diz, até porque é preciso “complexificar” o discurso e abalar eventuais interpretações superficiais. “É muito fácil a maioria das pessoas pensar que qualquer coisa que eu faça é sobre violência, porque sou uma mulher negra e trans, então tem de ser tudo sobre uma vida triste e fatalista. Não é por aí.”

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Em Triptych, em vez do corpo, Juliana Huxtable preferiu pensar sobre a carne – o que, para ela, são conceitos distintos. “O termo ‘corpo’ funciona como uma base para uma ideia do ‘eu’. Há a noção de uma série de direitos inerentes a cada corpo como algo estático, coeso e coerente. Não acho que isso seja verdade em muitos sentidos; há vários exemplos de como muitas pessoas viram isso ser-lhes negado”, observa, referindo a exploração do corpo das mulheres e do seu trabalho, o assassinato de comunidades indígenas ou a escravização de pessoas negras. Por outro lado, “pensar em carnalidade” pode abrir “outras possibilidades políticas” e de relação com os outros. “A ideia de carnalidade é menos individualizada, menos estática, menos automatizada, e não depende tanto da distinção entre corpo e mente.”

Esta reflexão concretiza, aqui talvez de um modo mais poético, a tentativa de desconstrução de identidades fixas, imutáveis, que percorre todo o trabalho de Huxtable – uma prática artística que é, ela própria, fluida, integrando spoken word, artes visuais, artefactos da Internet, música, performance. “Concordo que existe esse sentido de fluidez no meu trabalho. A ideia de me mover do ponto A para o ponto B nunca me soou verdadeira. Isso, combinado com o facto de gostar de fazer várias coisas e de ter chegado aonde estou através de diferentes caminhos, trouxe-me a um sítio caleidoscópico, de fluidez, em relação ao que eu faço, mas também ao que eu sou.” E isso traz à conversa os actuais modelos das políticas identitárias, que para Juliana Huxtable são, em grande parte, “obsoletos” e “ineficazes”. “Há muitas ideias que ainda são dos anos 90, como os conceitos de ‘maioria’ e ‘minoria’, até porque algumas das chamadas ‘minorias’ são cada vez mais a maioria. A linguagem utilizada não permite acompanhar questões como a interseccionalidade ou os avatares digitais”, considera a artista, assinalando ainda a apropriação e a distorção das políticas identitárias pela direita americana, mais concretamente a chamada “alt-right”.

“Vemos, por exemplo, os incels [homens que se descrevem como “celibatários involuntários” por supostamente não conhecerem mulheres que queiram ter relações sexuais com eles, defendendo muitas vezes a violação como “alternativa”]. Eles articulam o facto de não conseguirem ter encontros usando a linguagem das políticas identitárias. Há uma performance da exclusão por pessoas que são perpetradoras de violência e que beneficiam disso.” Apesar destes exemplos extremamente tóxicos, Huxtable acredita que há, actualmente, “muito em comum entre os sentimentos de ansiedade de diferentes pessoas”. “Acho que o mau uso das políticas de identidade impede um humanismo com mais nuances, que consiga abranger o que as pessoas partilham versus o que as impede de ver esses medos partilhados.”

E, no meio disto tudo, diz Juliana Huxtable, Triptych “não é tanto sobre política” como alguns dos seus trabalhos anteriores. “Quando estava a escrever este projecto, a minha vontade era mais tentar evocar uma intensidade emocional – mas claro que é aberto a várias interpretações.”

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