Joanaland

Esta é a genialidade de Joana Vasconcelos: mostrar-nos um retrato lúdico, mas impiedoso, do parque de diversões que o sistema económico criou de Portugal e dos portugueses.

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O meio português, tão restrito e pequeno, continua a tentar apoucar este percurso Paulo Pimenta

A melhor obra feita até hoje por Joana Vasconcelos está nesta exposição. Trata-se de Burka, uma peça com data de 2002, pertencente à colecção do Museo de Arte Contemporáneo de Castilla y Leon. Não esteve na anterior antológica desta artista em Portugal, feita no Palácio da Ajuda, em 2013, pouco antes de representar Portugal na Bienal de Veneza desse ano. Mostrada pela primeira vez na Arco Madrid, no ano em que foi feita, Burka apropriava-se de filmagens de enforcamentos de civis veiculadas pela comunicação social durante os meses de terror talibã no Afeganistão. O pai da artista, na altura fotógrafo de guerra, trouxera esta peça de vestuário dessas paragens. Joana Vasconcelos vestiu-a com sete saias (uma alusão ao traje típico da Nazaré), e a obra que criou mostra esta indumentária a ser puxada lentamente por um guindaste até ao limite do possível, antes de cair inanimada no chão como um fantoche. Ou um corpo morto.

A capacidade de Joana Vasconcelos de interagir com a realidade social, inclusive com os estereótipos femininos, atingia nesta época o seu auge. I am your mirror, a grande e polémica antológica inaugurada no Museu de Serralves, revela-nos algumas delas, entre as quais a Noiva, uma das mais conhecidas da autora, a Cama Vallium, ou mesmo Ponto de Encontro, um carrossel de cadeiras de escritório, feito e exposto pela primeira vez nesta mesma instituição, e que na época se dava a ver como um comentário sarcástico e bem conseguido à “dança das cadeiras” dos conselhos de administração das empresas públicas. Embora tivesse começado a expor uns anos antes, é certo que neste momento Joana Vasconcelos se inseria numa certa vertente artística da época, que aliava a associação de ideias e a apropriação de materiais não exactamente conotados com a escultura de filiação mais tradicional, a uma vontade de intervenção sociológica ou politica certeira. João Pedro Vale, por exemplo, ou Pedro Valdez Cardoso, estavam por estes anos muito próximo desta linguagem.

Só estas três peças justificariam, se necessário fosse, a visita a Serralves. Conhecemos a polémica que tem envolvido a exposição, e que se prende com a origem misteriosa da programação, da passagem pelo museu de uma produção gigantesca que começou em Bilbao e que terminará nos Países Baixos, e que inclui também a saída de um anterior director, ou talvez não — não há certezas, e provavelmente nunca haverá. O que é inegável é que a exposição aqui está, repleta de peças também de grande formato, que confirmam a imagem que o público, quase todo, construiu da obra de Joana Vasconcelos: obras lúdicas, facilmente compreensíveis, que materializam metáforas ou jogos de palavras evidentes. Duas das obras que foram realizadas propositadamente para esta exposição exemplificam este processo de forma muito clara. I’m your mirror, o título de uma grande escultura representando uma máscara feita com espelhos de dupla face (e que é também o título da exposição), joga com a consabida afirmação de que a máscara é também uma identidade, real ou ficcionada; e Solitário, um anel construído com jantes douradas e mais de um milhar de copos de cristal, apropria-se de um símbolo de riqueza universal para o apresentar com materiais inusitados, embora também relacionados com a ostentação e a vaidade. Animais de cerâmica cobertos de croché, corações feitos de garfos de plástico e outros helicópteros decorados com plumas de avestruz materializam uma arte simultaneamente séria e divertida, apropriada para todas as idades, visível como um outdoor na cidade e tão facilmente memorável quanto um anúncio de tv que nos devolve, a nós, uma imagem da portugalidade oca — tão oca como um tour de Lisboa em autocarro turístico panorâmico, intermediada pelo ecrã do smartphone em modo filme.

Esta é a genialidade de Joana Vasconcelos: mostrar-nos um retrato lúdico, sem dúvida, mas também impiedoso, da imagem que a sociedade de consumo e o sistema económico em que vivemos criou de Portugal e dos portugueses. A partir da década de 2000, justamente, percebe que a sua obra precisa de uma dimensão internacional, e toma-a, sem pedir licenças, passando por cima de intermediários e seguindo em frente até chegar aos centros de decisão. A sua escultura torna-se gigantesca, desmedida, e é isso que vemos nos jardins de Serralves. Entre sapatos feitos com panelas, bules em ferro forjado ou longínquas citações do porta-garrafas de Duchamp, as esculturas de Vasconcelos encontram naturalmente o seu lugar na enfiada (literal) da colher de jardineiro pop do casal Oldenburg. E recordamos outras esculturas de jardim que aqui vimos no verão passado, desta vez de Anish Kapoor, igualmente jogando na escala e na trouvaille lúdica, esvaziada de todo o sentido após 30 ou 40 anos da sua invenção, para interagirem com o espectador.

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Paulo Pimenta

Joana Vasconcelos, tal como sucedia no começo do milénio, não está hoje sozinha nestas opções artísticas. Há obviamente um espaço no mundo da arte para o seu tipo de trabalho, e duvidar que se trate de arte só pode relevar da total incompreensão daquilo que hoje define o objecto artístico. Mencionámos Oldenburg e Kapoor, mas podemos também referir Damien Hirst, Yayoi Kusama, e mesmo Ai Weiwei, tão ambíguo, que vivem entre grandes exposições, todas mais espectaculares que as precedentes, orientadas para um mercado de coleccionadores privados milionários que são hoje os únicos a poderem considerar sequer as cotações astronómicas da obra de cada um deles. O meio português, tão restrito e pequeno, continua a tentar apoucar este percurso, e sobretudo o sucesso da obra da artista, e isto mesmo da parte daqueles que habitualmente são os primeiros a apontar o dedo a qualquer incorrecção política, real ou imaginária, alheia. Será que se dão conta da misoginia dos seus propósitos?

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