Viver no inferno

É esta a realidade, quase sempre esquecida, das crianças expostas à violência doméstica.

Algumas crianças vivem no paraíso. Outras vivem no inferno.

Algumas crianças acordam de manhã e saltam da cama felizes, rumo ao pequeno-almoço e à escola. São acordadas com beijos e mimos, vozes doces e o cheiro a pão quente.

Outras crianças acordam apreensivas com o cenário que irão encontrar. Quem está em casa e em que condições? Estará a mãe triste e chorosa? Ou irritada e zangada? Estará o pai presente para o pequeno-almoço? Ou terá já saído de casa, batendo a porta com força? E onde estão os beijos e os mimos? O pão, ainda que quente, não lhes aquece o coração.

Algumas crianças vão para a escola sorridentes. Levam na mochila os livros e os lápis de cor, nos olhos o brilho de quem deseja conquistar o mundo.

Outras crianças vão para a escola preocupadas. Carregam em si o peso do medo e da responsabilidade. Afinal de contas, deixam para trás os pais. Será que os vão encontrar em casa ao final do dia? Será que a mãe vai estar novamente com marcas na cara? Será que o pai chora quando pensa que ninguém vê?

Algumas crianças estão nas aulas e saboreiam as letras dos livros. Os números dançam à sua frente e as palavras dos professores são música para os seus ouvidos.

Outras crianças estão nas aulas e o seu pensamento está em casa. Estará tudo bem? Será que gritaram um com o outro? Será que se bateram? Será que precisam de mim?

Algumas crianças vão para o recreio e dão asas à sua imaginação. São bruxas e duendes, reis e rainhas, que correm uns atrás dos outros e se escondem por magia. As bolas dançam no ar e os berlindes conquistam as covas desenhadas na terra.

Outras crianças vão para o recreio e não brincam. As suas mentes estão povoadas de monstros, estes bem reais, que deitam fogo pela boca e agridem. Como podem brincar infestados de memórias más?

Algumas crianças conversam, resolvem divergências e partilham. Emprestam os seus materiais e brinquedos, aguardam pela sua vez e aprendem a lidar com as contrariedades. Não podem ganhar sempre e perder faz parte da vida.

Outras crianças gritam e batem nos colegas, por vezes até nos adultos. Bater é uma boa forma de resolver os problemas e de expressar a zanga que sentem. É isso que aprendem em casa. E choram, sozinhas, escondidas na casa de banho.

Algumas crianças regressam a casa cansadas, mas felizes. Brincar, banhos e jantar, história antes de adormecer, que acalma e embala. Os olhos fecham-se devagar e com promessas de sonhos. Sonhos bons.

Algumas crianças regressam a casa com o coração apertado. Espera-as a tensão e o receio face ao desconhecido. Sem previsibilidade, surge a angústia e a ansiedade. E não, não adormecem devagar. A canção que as embala é feita de gritos e insultos. Os olhos fecham-se de exaustão, inundados de lágrimas e fantasmas. À sua espera, sonhos maus.

Algumas crianças vivem num ambiente de paz e afecto, com rotinas e limites. Crescem com a segurança que apenas uma relação de vinculação segura lhes pode dar, permitindo-lhes explorar o mundo, confiantes.

Outras crianças vivem num ambiente hostil, com violência verbal e muitas vezes física. Assistem a essa violência, aprendem que esta pode ser legítima e ensaiam também formas diversas de a exercer. Não têm dos seus pais o colo e a disponibilidade necessária para os acolher. Sozinhos, inseguros e tantas vezes desorganizados, procuram uma forma de sobreviver.

Estas crianças dão sinais, nem sempre explícitos, de sofrimento psíquico. Sintomas ansiosos e depressivos, alterações de comportamento e de humor, alterações no rendimento escolar. Sentem medo e culpa, crescem de uma forma apressada e aprendem, da pior forma possível, que existem problemas. E dor. E morte.

É esta a realidade, quase sempre esquecida, das crianças expostas à violência doméstica.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários