“Queremos salvar... ‘as companhias seguradoras’”?

Será que onde, nos discursos da tutela, reiteradamente se lê “queremos salvar o Serviço Nacional de Saúde” deverá ler-se “queremos salvar as companhias seguradoras”? Tudo, de súbito, se tornaria claro e transparente...

É com perplexidade que assistimos ao arrastar de dois processos negociais por parte do Ministério da Saúde: o que o opõe às estruturas representativas dos direitos dos enfermeiros e o que concerne à renegociação das convenções celebradas entre a ADSE e os grupos privados que exercem atividade na área da saúde.

Os enfermeiros, nos últimos 20 anos, tornaram-se cada vez mais tecnicamente qualificados e reclamam que a sua dignidade no trabalho em matéria de remuneração equitativa e de progressão na carreira com base no mérito seja plenamente respeitada quando trabalham no Serviço Nacional de Saúde. As suas reivindicações são semelhantes às dos seus colegas europeus – ainda ontem soubemos que, na Irlanda do Norte, também estão a exercitar o seu direito à greve, exigindo melhores condições salariais e de trabalho.

A quem tem aproveitado este impasse intermitente nas negociações até agora realizadas com a Federação Nacional dos Sindicatos dos Enfermeiros? Às agências funerárias, desde logo, uma vez que a taxa de mortalidade certamente aumentou, nos últimos meses, na sequência do sucessivo adiamento de cirurgias programadas e da desorganização na prestação de cuidados de saúde que necessariamente a acompanha. Aos estabelecimentos do sector privado e social de prestação de cuidados de saúde, em segundo lugar, dado que ninguém no seu perfeito juízo e dispondo dos necessários meios económicos procura cuidados num estabelecimento onde os enfermeiros estejam a fazer uma greve: os sintomas e a progressão da doença não podem ser suspensos enquanto esta durar e as pessoas doentes procuram alternativas rápidas e eficientes. Aproveita, ainda e por fim, às companhias seguradoras, uma vez que com a degradação sistemática da imagem do Serviço Nacional de Saúde a que temos assistido nos últimos meses, serão cada vez mais os que ponderarão pagar, pela segunda vez, os cuidados de saúde de que eventualmente venham a necessitar, celebrando um contrato de seguro privado para o efeito.

O anúncio da suspensão e possível cessação da vigência das aludidas convenções já implicou a discriminação em razão da situação económica dos funcionários públicos que não dispõem das verbas indispensáveis para pagar imediatamente os cuidados de saúde de que carecem e aguardar o futuro reembolso de parte do pagamento efetuado, pela ADSE. Atento o baixo nível médio dos rendimentos destes, são muitos os já afetados pelo impasse negocial a que temos assistido na matéria. Não dispondo das aludidas verbas, correm o risco de não ser atempadamente tratados pelos estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde ou do sector social, que não se encontram preparados para satisfazer este inesperado e grande aumento da procura dos seus serviços.

Se ocorrer a segunda das situações referidas ou, mesmo, a possível extinção do subsistema da ADSE, muitos funcionários públicos não terão capacidade económica para celebrar um contrato de seguro privado que lhes assegure cobertura de cuidados idêntica à de que anteriormente dispunham através da ADSE. E, sobretudo, muitos verão a sua pretensão de o celebrar recusada, por serem idosos ou por sofrerem de doença ou deficiência grave, não se afigurando previsível a obtenção de lucros, a partir dos cuidados de saúde que lhes venham a ser prestados.

A má condução do processo negocial que levou ao extremar de posições ideológicas quando o que estaria em causa seria apenas negociação criteriosa e transparente do conteúdo das convenções celebradas e o acompanhamento sério da sua aplicação, por parte das entidades nela envolvidas, tem inegáveis consequências graves na vida de muitos cidadãos portugueses. Contribui também, ainda que indiretamente, para o fim do sistema de saúde português tal como o temos conhecido e que tão bons resultados tem tido, na melhoria dos indicadores de saúde da população, nos últimos 40 anos.

Com a explicação dada pelo Governo para a pretensa data do primeiro parecer emitido pela Procuradoria-Geral da República sobre o respeito das regras laborais aplicáveis à greve dos enfermeiros, talvez tenhamos entendido, finalmente, a razão de ser da imensa lentidão dos referidos processos negociais: será que onde, nos discursos da tutela, reiteradamente se lê “queremos salvar o Serviço Nacional de Saúde” deverá ler-se “queremos salvar as companhias seguradoras”? Tudo, de súbito, se tornaria claro e transparente... seria apenas uma gralha que teimaria em não ser corrigida nos discursos de quem nos governa.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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