Do Correntes d’Escritas aos congressos científicos

Ao longo de praticamente toda a passada semana, decorreu na Póvoa de Varzim aquele que é, ao fim de 20 anos de vida, o maior festival literário português. Dos 24 escritores da primeira edição passámos para mais de 130 este ano, vindos de cerca de 30 países da lusofonia e ibero-latino-americanos. Num mundo em que se fala tanto na queda vertiginosa dos hábitos de leitura e na crise do livro, o fenómeno Correntes d’Escritas dá que pensar. Habituado que estou a um outro tipo de reuniões – as dos congressos científicos –, dei por mim a pensar, enquanto deambulava pelos corredores do festival literário, nos paralelos entre estes dois tipos de concentrações de especialistas e do público consumidor dos produtos que cada um deles oferece.

Visto numa perspetiva comparada, o Correntes d’Escritas tem evidentes paralelos, mas também diferenças, em relação aos congressos científicos. A estes conheço-os bem através dum percurso em que subi todos os degraus, desde a apresentação de posters em que o autor está pouco menos do que invisível até à comunicação de um jovem no meio duma mesa de consagrados, depois era eu próprio um destes e passei a key speaker – os conferencistas convidados, cabeças de cartaz dos eventos científicos, têm de ser declinados no inglês, como tudo desde que a dominância do eixo anglo-saxónico se tornou hegemónica, instalando uma ordem que não só não se contesta como se aceita e glorifica.

Veio depois o dia em que fui o presidente de um congresso internacional – o chairman, já me esquecia de dizer em inglês… Primeira diferença: no Correntes há uma bem maior horizontalidade entre os escritores consagrados e os que estão ainda à procura de afirmação no mundo das letras. O Correntes é lugar de troca, celebração das línguas portuguesa e espanhola, através de alguns dos seus mais finos cultores. E sabemos como uma língua é bem mais do que mero instrumento de comunicação: é identitária, é constitutiva do pensar, cria espaço civilizacional.

Tal como é habitual nos congressos científicos, também no Correntes fui vendo alguns protagonismos e uma ou outra cedência à vaidade, percebi que há gente que vem para se aproximar dos famosos, para rondar editores, potenciar possibilidades num mundo literário povoado de gente que escreve e publica. E depois há a questão dos prémios, magistralmente criticada numa intervenção de Rodrigo Guedes de Carvalho: a literatura-competição, o lugar no ranking, numa sociedade da imagem onde se pavoneiam as personalidades narcísicas, parecem acontecer do mesmo modo na ciência e na literatura…

A impressão geral de que se lê pouco é aqui confrontada com o paradoxo de haver tantos a escrever. Escrevemos para quem? Andaremos a escrever de uns para os outros, chegámos a um mundo absurdo em que os escritores escrevem para os escritores? A ciência vai, neste particular, mais adiantada: no circuito altamente profissionalizado da escrita científica, que praticamente só se faz em revistas internacionais, já de há muito que escrevemos uns para os outros. E de tanto que temos de escrever pouco tempo nos sobra para ler o que escrevem, e os outros pouco tempo têm para ler o que escrevemos nós. Ora, num mundo de abelhas-operárias que se especializam numa única função, o risco do afunilamento é grande e a estreiteza mental tem campo aberto para fazer caminho.

Neste ponto chego a outra diferença importante que vi no Correntes, na comparação com os congressos científicos: as mesas em que falaram os escritores mais consagrados – cito, para não ferir suscetibilidades nacionais, apenas estrangeiros como Ignácio de Loyola Brandão (Brasil), Sérgio Ramirez (Nicarágua), Juan Gabriel Vásquez (Colômbia), Mempo Giardinelli (Argentina), Pilar del Rio (Espanha) ou Manuel Rui (Angola) –, nas mesas em que falaram, dizia, houve conversa aberta. A função social da literatura na denúncia da opressão, da ascensão do pensamento único, das tentações totalitárias, esteve em pleno. No Correntes falou-se com espontaneidade, com a inteligência à solta, falou-se com a alma, para justificar ideias e posicionamentos.

Um público numeroso escutava atento, gente que não cabia nas salas sentava-se nas escadas e aproximava-se como podia – interesse vivo, a contrastar com o cinzentismo que habita hoje tantos congressos. Por onde tem andado a função social da ciência em tantos e tantos eventos que organiza, cada vez mais reuniões insossas e repetitivas de especialistas que não comunicam porque tenham resultados importantes a transmitir mas porque têm indicadores de realização a cumprir?

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