Infidelidades e justiça

Afirmar, como foi feito na deliberação do CSM, que o conteúdo de uma decisão judicial pode ser objecto de apreciação disciplinar é um passo de inexcedível importância no regime.

Senadores da República, sábios e fazedores de opinião, jornalistas e feministas, senhoras cansadas no metro, até o Desalinho da bem regressada ao PÚBLICO Cristina Sampaio (exprimindo o sentir comum pelo desenho de um nasofaloforme e gélido juiz junto a uma batida e injustiçada Justiça) todos estes e ainda mais uma massa de pessoas de bem pareceram, durante uns dias, ter-se rendido a uma dada representação do caso do “juiz das mulheres adúlteras” tal como apreciado recentemente pelo Conselho Superior da Magistratura. Uma representação fiel teria de ter em consideração alguns dados que se encontram à distância de alguns cliques.

a) A função, a composição e a actividade do Conselho Superior da Magistratura são públicas. A Internet põe à nossa disposição o texto da Constituição, cujo artigo 217.º estabelece que o CSM, além das funções de gestão do corpo judicial, exerce a acção disciplinar sobre os juízes. Logo a seguir, o artigo 218.º define como é constituído o CSM: para além do Presidente, que é, por inerência o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (cargo que, por sua vez, resulta de eleição pelos restantes juízes desse tribunal), integram o CSM dois elementos designados pelo Presidente da República (não juízes), sete elementos eleitos pela Assembleia da República (também não juízes, devendo ter recolhido dois terços dos votos) e sete juízes eleitos pelos seus pares (no decurso de eleições, cuja campanha eleitoral por coincidência se encontra em curso; os “pares” são-no em duplo sentido, pois trata-se de juízes elegendo juízes, dentro de cada categoria profissional). No sítio do CSM encontram-se apresentados à comunidade todos os membros do CSM.

b) Não creio que tenha sido transmitido fielmente à opinião pública que nenhum juiz do CSM considerou aceitável o estilo misógino do texto judicial no caso do “juiz das mulheres adúlteras”. Consultem-se, a este respeito, as declarações de voto, publicitadas no site do CSM em “Deliberações tomadas no Plenário de 05-2-2019 – Nota informativa”, sobretudo a partir da página 17, no ponto 27. O voto a favor do arquivamento do processo disciplinar, pela maioria dos juízes que têm assento no CSM, foi justificado sobretudo pelo entendimento de que o CSM não teria competência para exercer acção disciplinar sobre actos (de outro modo sancionáveis) praticados mediante palavras no teor de uma decisão judicial, por força do princípio da independência dos juízes, ou mais precisamente, dos tribunais, sendo a irresponsabilidade do juiz um dos pilares constitucionais dessa independência, nos termos do artigo 216.º, n.º 2 da Constituição.

c) Tem passado à margem do escrutínio da comunidade a circunstância de a deliberação sancionatória no caso do “juiz das mulheres adúlteras” ter sido a primeira, tanto quanto é dado saber, que aplicou uma sanção disciplinar por palavras inscritas no texto de uma decisão judicial.

d) Menciono ainda, pela incompreensível falta de atenção que tem merecido, que os juízes mais graduados do CSM, que estão entre os juízes mais prestigiados e experientes do país — o Presidente, que, como referido, é por inerência o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, cargo para que foi eleito pelos seus pares, e o Vice-Presidente, que é também um juiz-conselheiro — votaram a favor da competência disciplinar do CSM, bem como a favor da (também inédita) sanção disciplinar. Ambos fundamentaram extensamente a competência disciplinar do CSM, apresentando critérios de salvaguarda do princípio da independência em substanciais declarações de voto (também disponíveis no site atrás referido).

e) Afirmar, como foi feito na deliberação do CSM, que o conteúdo de uma decisão judicial pode ser objecto de apreciação disciplinar é um passo de inexcedível importância no regime. Tão importante, pelo menos, como a resposta disciplinar sancionatória de uma deriva misógina, sobretudo num país (algo mais vasto que um sistema judicial) que vem falhando perante as cidadãs. Mas o tema da independência também não é um tema “dos juízes”, e sim um tema “dos cidadãos”. Não deve ser relegado para um plano menor e paroquial como “questão corporativa” dos juízes. Este é também um tema da polis.

f) No debate que queiramos fazer a este propósito, é de ter em conta que o valor constitucional da independência dos tribunais é uma outra face do valor constitucional do primado da lei, a cuja obediência os juízes estão vinculados. Independência dos tribunais e obediência à lei são faces da mesma moeda na óptica cidadã. Mas também é de ter em conta que todas as decisões sancionatórias do CSM são passíveis de recurso judicial, designadamente quanto à sua constitucionalidade.

g) Trago à atenção de quem me lê que sou vogal do CSM designada pela Assembleia da República. Votei a favor da responsabilidade disciplinar por ter considerado que a independência do tribunal e a irresponsabilidade do juiz não abrigam comportamentos anti-jurídicos, como decorre do próprio texto da Constituição. No caso a que me refiro, a deriva sexista que foi analisada surge em desenvolvimentos supérfluos do ponto de vista jurisdicional, num espaço de mero reforço retórico, que todo o juiz pode certamente ter, mas que foi abusiva e lesivamente utilizado. Pronunciei-me também a favor de sanção mais pesada do que a que foi aplicada, mas não de uma sanção exemplar, por me repugnar tal conceito.

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